quarta-feira, 13 de abril de 2011

O OCEANO É FEITO DE GOTAS - GFERNANDO C. FARIA


           Viajara já um bom tempo e o cansaço começava a pegar-me no corpo. Estava numa jornada de férias e aproveitara para conhecer o litoral, na imensa região costeira do país. Não havia motivo de pressa e preferia ir pelos locais desabitados, desconhecidos do turismo comercial. Assim deslocava-se mais, na contrapartida da descoberta de recantos paradisíacos e suas águas livres de poluição humana.
 
           Foi quando avistei a enseada com seu colar de areias brancas. A fina linha delgada dividia os tons azulados no mar, da variedade verdejante nas encostas, num cipoal pendente da vegetação luxuriosa.

            No ponto médio da praia encastoava-se uma cabana recoberta de palha. A chaminé de pedra soltava um fiapo cinzento que vagava lento na sua imprecisão. Ia na direção da mata como se fosse uma serpente indecisa, na procura de abrigo e proteção.

            O isolamento da casa chamou-me a atenção. Quem ali estivesse gostava de solidão.
 
           A hora, o corpo cansado e a fome atiçada pela fumaça de um fogão, fizeram-me lá parar. Não custava sondar e, no mínimo, seria obtida alguma informação.

            Nas proximidades sentia-se já o cheiro provocante do camarão, da lagosta, do arroz temperado e demais frutos do mar.

            Aqueles aromas renderam-me o espírito. Antes mesmo de saber quem lá estivesse, já me dispusera a um assédio determinado. Dali não iria sem hospedagem, nem mesmo se a responsabilidade de tais emanações fosse de uma feiticeira com poderes de Circe.

            Os ruídos do desembarque dispensaram-me o assédio da choupana. Fui recebido a meio caminho por uma presença desconfiada nos umbrais da entrada. Era uma figura tostada pelo sol, com os cabelos longos presos à nuca, vestindo uma bermuda “jeans”, compatível com o clima tropical.

            Olhou-me fixamente durante um longo minuto sem nada dizer. Parecia avaliar-me o destino, a vida e os motivos de meu inusitado aparecimento. O silêncio das palavras ficava acentuado pelos ruídos do mar, do vento nas palmas e pelos piados e gritos longínquos na mata.

            Como recém chegado cabia-me a explicação de lá estar. Procurei expressar o mais, indagando apenas o mínimo.

            - Ôhh... de casa!... Tens aí alívio p´ra um corpo quebrado?

            A reação demorou a se dar, como se faltassem respostas para indagações silenciosas que restavam pairando no ar.

            Expressando num gesto a atitude de quem adia a solução de uma charada, disse apenas:

            - Entre...

            Com um aspecto externo comum, internamente a choupana destoava do modelo tradicional da região. Era ampla e sem paredes divisórias, no tipo de um abrigo montanhês.

            - Coloque seus objetos ali no canto, próximo daquela rede, e prepare-se para jantar. A comida está quase pronta – falou enquanto dirigia-se ao fogão.

            A lenha seca ardia numa chama amarelada rodeada de brasas vermelhas e das panelas subiam os vapores espertos. Acima pendiam os defumados numa gama de tons bronzeados, indicando a variedade de suas espécies e sabores.

            - Nota-se que levas uma vida de farturas, hem?...

            - A natureza aqui não deixa a ninguém com fome – respondeu.

            Comemos bem, com calma, enquanto chegávamos a um ponto satisfatório na troca de informações sobre a vida de cada um.

            Contou-me que cuidava de ciências naturais e desenvolvia pesquisas autônomas.

            O resultado de seus trabalhos eram utilizados em universidades da capital. Já dera aulas, mas agora preferia o trabalho de campo, com aquela independência relativa que ali podia-se notar.

            Disse-lhe levar também uma vida semelhante, mas com pesquisas voltadas às ciências sociais. Meus resultados, convertia-os em literatura, com publicações existentes, sofridas do mercado e da realidade intelectual.

            A conversa derivou naturalmente e abarcou os motivos daquela maneira de viver. Nossas experiências, fundadas em setores diversos, culminavam em resultados comuns.

            Explicou a opção de seu estilo de vida, em razão dos desvios que o mundo aplicava. Nossa troca de idéias foi mais fecunda a meu favor. Afinal, tais assuntos eram do meu setor.

            Entre os diversos pontos abordados, houve um a me ficar na memória.

            Comentávamos então, as mazelas da humanidade, lamentando o mau resultado de algo possível e melhor.

            Foi dali que ouvi a comparação da qual jamais me esqueci.

            -Veja o oceano lá fora... É imenso e praticamente incalculável em sua complexidade, mas é feito de gotas... Seja das que já recebe em volumes vários através dos rios, ou das que lhe caem diminutas diretamente do céu, mas é feito de gotas... Assim também são as grandes aflições da humanidade... Variam em extensão e profundidade, mas são todas resultados finais das pequenas e aparentemente insignificantes atitudes individuais.

            - É mais fácil vislumbrar esta realidade na imensidão dos mares, do que aceitá-la como participante na devassidão dos males – ponderei.

            - Sim... E, isto talvez, devido à própria situação de participante – e concluiu – Porém... Cada um tem sua parcela de responsabilidade... Seja por ação... omissão... ou até mesmo por mera opinião.

            - Mas sentem-se todos capazes de lapidação, sem se confrontar a condição de total isenção... Indispensável ao direito de atirar a primeira pedra.

            - Os que têm tal condição, são justamente aqueles que mais procuram evitá-la... Pois, afinal não é solução... Isto, só seria possível com erradicação das causas.

            - Mas, isto... Quando acontecerá?!...

            - Bem... Meu amigo... Isso, talvez... Só caiba ao Todo Poderoso saber...

            Daquela vez, ali foi meu ponto final... Fiquei o restante da temporada, ajudando e colaborando à meu alcance.

            De outra vez que lá voltei, a praia estava deserta. Não fosse a velha chaminé de pedra esboroada, os vestígios restantes de carvão e palha permitiriam deduzir apenas a passagem efêmera de um pescador.

            Os escombros enegrecidos afiguravam-se agora como um sepulcro arrasado... Não passavam de um monturo calcinado ao qual identificava tão somente pelas recordações que trazia.

            Pareceria mesmo que tudo tivesse sido sonho, ficção, ou até manifestação do sobrenatural, se aqueles sinais não me confirmassem a realidade.

            Voltei o olhar ao oceano, que parecia imutável, com suas mesmas vagas rolando no areal... Mas o local já não era mais o mesmo.

            Recordei então o que ouvira ali, e uma complementação, várias vezes citada pela misteriosa figura do estranho personagem que lá encontrei.

            - Não se afobe... meu caro – repetia sempre – É previsão conhecida, recitada e estabelecida, de que o sertão já foi mar... E um dia virá em que também o mar... um sertão será.
 
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