O velho e rijo Matheus
Alencar vivia solitário em sua cabana. A
choupana, construída com os materiais naturais existentes no local, era o
modelo comum das demais moradias caboclas da região.
De um lado, um pouco acima,
ficavam esparsas as fruteiras comuns: Goiabas, mangueiras, jabuticabas,
ateiras, pitangas e outras variedades locais, constantemente visitadas pelos
sanhaços, sabiás e saíras coloridas. Nas forquilhas dos galhos mais baixos
escoravam-se os ninhos de taquara, com paus roliços de acesso ao solo. Nas
sombras ciscavam e espojavam algumas galinhas, pacíficas, capitaneadas por um
galo vermelho, atento e autoritário com tudo à sua volta.
À beira do terreiro de chão
batido erguia-se uma paliçada de bambus. Guarnecia a pequena horta vigiada pela
cabeça oca de uma rês... A ponta branca de um dos chifres era o posto preferido
de um canário cabeça de fogo, onde trinava vigilante.
Entre as varas da cerca
costumava esgueirar-se inquieta a diminuta corruíra. Aparentava sempre ares de
cobiça no espaço oco da caveira bovina, mas não se atrevia à verificação de que
a fêmea do canário certamente já o ocupara com seu ninho.
O regato cristalino
despejava-se numa bica próxima. Corria manso através dos canteiros de verduras
e desaguava abaixo em outro espaço cercado também com bambus, agora roliços,
longos e dispostos num fecho horizontal. Ali dormitavam e grunhiam alguns
leitões e marrãs preguiçosas.
No gramado em frente à
morada pastava a cabra leiteira, contida pela corda que trazia ao pescoço. Ao
seu redor perambulavam dois filhotes inquietos.
Ao fundo via-se ainda a
velha mula manhosa, com fama de só aceitar no lombo o peso de seu dono. Agora
catava os brotos de capim escolhidos, mantendo atentas as compridas orelhas.
Postava-se como testemunha silenciosa de antigas andanças, cultivando merecido
ócio e lembranças de longas jornadas.
Toda a área achava-se sob a
vigilância cuidadosa e dedicada de Netuno, um enorme cão negro sempre presente
nos arredores da casa. A supervisão interna cabia a um gato também negro, que
mantinha ares de ser o maior responsável por ali. Através do olhar semicerrado
fiscalizava a tudo e a todos.
Na parte mais alta do
terreno, em seu posto preferido acima de um cupinzeiro, encontrava-se sempre a
coruja buraqueira, com seu campo de visão privilegiado. Dali lograva vigiar a
chegada de todos que se aproximassem. No seu giro de cabeça característico
mirava tudo com precisão fixa, e gingava o corpo num balanço ameaçador, piando
estridente seu alarme preventivo.
Àquela pequena gleba,
situada à beira do caminho que ia dar na localidade próxima, reduzia-se o
espaço ocupado pelo ancião. Na cidade, tudo diziam de misterioso a respeito da
origem daquele negro de barbas e carapinhas já brancas. Até os mais velhos
moradores não se lembravam de quando chegara ali. Era mesmo ele o mais antigo
entre todos naquelas paragens. Se perguntado aumentava o mistério, respondendo
com metáforas e metonímias à toda curiosidade banal e a tudo que não fosse de
interesse direto na indagação. Tinha famas de curandeiro e não as deixava
negar. Era mesmo exímio conhecedor e receitava com maestria a utilização de
plantas e ervas medicinais. Na horta e à volta da casa cultivava desde a mais
forte das pimentas à mais doce das ervas aromáticas. Conhecia a aplicação das
mais ácidas e amargas folhas aos potentes analgésicos naturais. Dizia-se também
que era feiticeiro. A isto mantinha como garantia de respeito e segurança de
suas pequenas posses. Em seus animais e objetos ninguém se atrevia a colocar as
mãos sem autorização.
Certa vez, instado a
respeito de sua idade, seus conhecimentos e experiências, respondeu
transmitindo ao curioso a seguinte proposta:
“Olha, meu filho, que nem eu
sei e nem tô preocupado com isso. Aqueles passarinho lá fora também não sabe a
deles e vive cantando até o fim. Lá vai bastante tempo, eu já era branco de
barba e cabelo, e me apareceu aqui um home novo, mas muito esquisito. Ele
também me perguntô a idade, e se eu queria fica moço outra vez. Disse que tinha
o segredo p’ra isso e que podia me ensiná. Eu só precisava pensá e resolvê logo
porque ele não tinha muito tempo p’ra perdê. Nunca fui de especulá à toa, mas
gosto de sabê o que pode sê de meu serviço. E o que for p’ra melhorá nunca deve
se desprezá. Então ele disse que eu tinha uma escolha p’ra fazê: Eu podia voltá
no tempo p’ra idade que quisesse. Se tivesse disposto a repassá por tudo, de
bom e de ruim, repetindo os mesmos'erro com a mesma cabeça boba, podia vivê
todos anos outra vez. Se quisesse voltá sabido, experiente da vida, tinha uma
troca p’ra acontecê: P’ra cada ano de acerto valia dez de desacerto, dois por
vinte, e assim, assim, meia vida por metade de sabedoria... Eu só precisava
escolhê. Pensei... pensei... e ele atalhou: 'Pensa logo que não tenho
tempo p’ra perdê. Diga logo sim ou não, pois se ficá calado quer dizer que
aceitou.' Resolvi na hora. Achei melhor deixá tudo como era e não pensá mais
nessa proposta. No final das conta, quem fez o mundo devia de sabê o que tava
fazendo e não convinha a gente mudá. Lembrei que Jeová era judeu e não convinha
nós negociá. O que me foi dado, foi dado, e não havia por que reclamá. Até hoje
vivo aprendendo e sei que vai acabá faltando ainda muito o que aprendê. Essa é
a serventia da vida. Foi o que aquele moço aprendeu. No primeiro minuto de
sábio foi isso que descobriu. Então ainda tinha saída, mas precisava arranjá
alguém que aceitasse seu lugá. E, a pressa que ele tinha era fácil calculá.
P’ra cada hora perdida era dez a lhe faltá. E p’rocê que é curioso, vai quere
experimentá? ”
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