terça-feira, 1 de novembro de 2016

TEMÁTICA GERAL

- Romances -
       
- ÚLTIMOS FILHOS DE BAEL -

     - Miral Link de Solo.
     - Pena de Morte com Garantia de Eficácia.
     - Autodestruição.
     - Fagulha no Palheiro.
     - O Clone.
     - Os Últimos Filhos de Bael.

                         
- PODERIA TER SIDO DIFERENTE -
   
     - Juca Zeca Tiroca.
     - Mas, Poderia Ter Sido Diferente.
     - A Luta Continua.
     - O Guerrilheiro Heroico.
     - Consolidação da Resistência.
     - O Ataque Frontal.

- ARMAÇÃO FUNDAMENTAL -

     - A Armação Fundamental.
     - Buraco Negro.

- ESTÓRIAS DE PADRE COMARCO -
(coletânea de contos)

     - A Proteção dos Pinguços.
     - A Unidade, a Dicotomia e a Dualidade.
     - Água na Lua.
     - Assistindo o Apocalipse.
     - Baloeiro.
     - Bobeira, Loucura ou Burrice.
     - Denso ou Ralo.
     - Deus na Sacola.
     - Deus Humorista, e o Diabo, Louco.
     - Drogas, a Palavra da Medicina.
     - É Drama p´ro Gato.
     - Existir... Existe.
     - Futebol Au Au.
     - Jesus ou Judas.
     - Mascarado é Bandido.
     - Medida do Tempo.
     - Nair Sacolaro e o General Bicudo D´Alma Ferrosa.
     - O Anel do Segredo.
     - O Estrela Negra e as Anãs Brancas.
     - O Pavor e a Angústia do Bichinho.
     - Pacto com o Demo.
     - Reflexão.
     - Trindade.
     - Viver é Rascunho.

- PRIMUS -

     - A Humanidade, o Horóscopo e a Esfinge.
     - Boneca de Pano.
     - Canzoal.
     - Caverna, Templo ou Residência.
     - Cremado Seria Melhor.
     - Gnoseologia.
     - Navio Negreiro.
     - Rabo Verde.
     - De Menor.
     - Nadar e Votar.
     - O Bicho da Seda.
     - O Relógio da Vida.
     - Salário, Suor e Sangria.
     - Só Morre de Inanição.
     - Vida Boa.

- NOVOS -

     - A Presunção da Mente é Maior que o Universo.
     - Cabeça, Coração e Alma Leves.
     - Com Mais Dez e Perde o Apocalipse.
     - Deixei de Ser Besta.
     - Desesperados, mas Astuciosos.
     - Diagnose.
     - Difícil ser Magro.
     - È Drama p´ro Gato.
     - Entre Deus e o Diabo.
     - Esnobe Capital.
     - Fazenda Mundão.
     - Fernando da Gata.
     - Latifúndio Divino.
     - Mascarado é Bandido.
     - Medida do Tempo.
     - Melhor Só Pegando Onda.
     - Nossa Senhora, Protetora dos Pinguços.
     - O Anel do Segredo.
     - Ponte, Pinguela ou Corgo.
     - Preparado ou Inculto.
     - Recado, Retorno ou Definição.
     - Se Der Certo, Vai.
     - Sepulcro Caiado.
     - Tatu de Sucesso.
     - Uma Ilusão, Uma Esperança e Um Desejo.
     - Viver é Rascunho.
   
- SOBRECARGA -

     - A Sorte e o Azar.
     - Aproximadamente Três.
     - Caminho de Cigano.
     - Cego e Paraplégico.
     - Contato Consciente.
     - Difícil Esquecer.
     - Em Qual dos Mundos.
     - Era Isto que Queria.
     - Intervir é Forçar a Barra.
     - Maior é o Mundo.
     - Modificador.
     - Não Tem Fim.
     - O Que Ajunta ou Espalha.
     - O Mais Importante para Deus.
     - Santo da Terra.
     - Satisfação e Realização.

terça-feira, 25 de outubro de 2016

A TRANSAÇÃO DE MATHEUS ALENCAR

O velho e rijo Matheus Alencar vivia solitário em sua cabana. A choupana, construída com os materiais naturais existentes no local, era o modelo comum das demais moradias caboclas da região.
De um lado, um pouco acima, ficavam esparsas as fruteiras comuns: Goiabas, mangueiras, jabuticabas, ateiras, pitangas e outras variedades locais, constantemente visitadas pelos sanhaços, sabiás e saíras coloridas. Nas forquilhas dos galhos mais baixos escoravam-se os ninhos de taquara, com paus roliços de acesso ao solo. Nas sombras ciscavam e espojavam algumas galinhas, pacíficas, capitaneadas por um galo vermelho, atento e autoritário com tudo à sua volta.
À beira do terreiro de chão batido erguia-se uma paliçada de bambus. Guarnecia a pequena horta vigiada pela cabeça oca de uma rês... A ponta branca de um dos chifres era o posto preferido de um canário  cabeça de fogo, onde trinava vigilante.
Entre as varas da cerca costumava esgueirar-se inquieta a diminuta corruíra. Aparentava sempre ares de cobiça no espaço oco da caveira bovina, mas não se atrevia à verificação de que a fêmea do canário certamente já o ocupara com seu ninho.
O regato cristalino despejava-se numa bica próxima. Corria manso através dos canteiros de verduras e desaguava abaixo em outro espaço cercado também com bambus, agora roliços, longos e dispostos num fecho horizontal. Ali dormitavam e grunhiam alguns leitões e marrãs preguiçosas.
No gramado em frente à morada pastava a cabra leiteira, contida pela corda que trazia ao pescoço. Ao seu redor perambulavam dois filhotes inquietos.
Ao fundo via-se ainda a velha mula manhosa, com fama de só aceitar no lombo o peso de seu dono. Agora catava os brotos de capim escolhidos, mantendo atentas as compridas orelhas. Postava-se como testemunha silenciosa de antigas andanças, cultivando merecido ócio e lembranças de longas jornadas.
Toda a área achava-se sob a vigilância cuidadosa e dedicada de Netuno, um enorme cão negro sempre presente nos arredores da casa. A supervisão interna cabia a um gato também negro, que mantinha ares de ser o maior responsável por ali. Através do olhar semicerrado fiscalizava a tudo e a todos.
Na parte mais alta do terreno, em seu posto preferido acima de um cupinzeiro, encontrava-se sempre a coruja buraqueira, com seu campo de visão privilegiado. Dali lograva vigiar a chegada de todos que se aproximassem. No seu giro de cabeça característico mirava tudo com precisão fixa, e gingava o corpo num balanço ameaçador, piando estridente seu alarme preventivo.
Àquela pequena gleba, situada à beira do caminho que ia dar na localidade próxima, reduzia-se o espaço ocupado pelo ancião. Na cidade, tudo diziam de misterioso a respeito da origem daquele negro de barbas e carapinhas já brancas. Até os mais velhos moradores não se lembravam de quando chegara ali. Era mesmo ele o mais antigo entre todos naquelas paragens. Se perguntado aumentava o mistério, respondendo com metáforas e metonímias à toda curiosidade banal e a tudo que não fosse de interesse direto na indagação. Tinha famas de curandeiro e não as deixava negar. Era mesmo exímio conhecedor e receitava com maestria a utilização de plantas e ervas medicinais. Na horta e à volta da casa cultivava desde a mais forte das pimentas à mais doce das ervas aromáticas. Conhecia a aplicação das mais ácidas e amargas folhas aos potentes analgésicos naturais. Dizia-se também que era feiticeiro. A isto mantinha como garantia de respeito e segurança de suas pequenas posses. Em seus animais e objetos ninguém se atrevia a colocar as mãos sem autorização.
Certa vez, instado a respeito de sua idade, seus conhecimentos e experiências, respondeu transmitindo ao curioso a seguinte proposta:
“Olha, meu filho, que nem eu sei e nem tô preocupado com isso. Aqueles passarinho lá fora também não sabe a deles e vive cantando até o fim. Lá vai bastante tempo, eu já era branco de barba e cabelo, e me apareceu aqui um home novo, mas muito esquisito. Ele também me perguntô a idade, e se eu queria fica moço outra vez. Disse que tinha o segredo p’ra isso e que podia me ensiná. Eu só precisava pensá e resolvê logo porque ele não tinha muito tempo p’ra perdê. Nunca fui de especulá à toa, mas gosto de sabê o que pode sê de meu serviço. E o que for p’ra melhorá nunca deve se desprezá. Então ele disse que eu tinha uma escolha p’ra fazê: Eu podia voltá no tempo p’ra idade que quisesse. Se tivesse disposto a repassá por tudo, de bom e de ruim, repetindo os mesmos'erro com a mesma cabeça boba, podia vivê todos anos outra vez. Se quisesse voltá sabido, experiente da vida, tinha uma troca p’ra acontecê: P’ra cada ano de acerto valia dez de desacerto, dois por vinte, e assim, assim, meia vida por metade de sabedoria... Eu só precisava escolhê. Pensei... pensei... e ele atalhou:  'Pensa logo que não tenho tempo p’ra perdê. Diga logo sim ou não, pois se ficá calado quer dizer que aceitou.' Resolvi na hora. Achei melhor deixá tudo como era e não pensá mais nessa proposta. No final das conta, quem fez o mundo devia de sabê o que tava fazendo e não convinha a gente mudá. Lembrei que Jeová era judeu e não convinha nós negociá. O que me foi dado, foi dado, e não havia por que reclamá. Até hoje vivo aprendendo e sei que vai acabá faltando ainda muito o que aprendê. Essa é a serventia da vida. Foi o que aquele moço aprendeu. No primeiro minuto de sábio foi isso que descobriu. Então ainda tinha saída, mas precisava arranjá alguém que aceitasse seu lugá. E, a pressa que ele tinha era fácil calculá. P’ra cada hora perdida era dez a lhe faltá. E p’rocê que é curioso, vai quere experimentá? ”

********

A MANDINGA

- Quero!... Quero!
Aquela atitude não soou estranha para Matheus Alencar. Conhecia ele a ousadia do tipo. Os sensatos, maduros e equilibrados, em regra declinavam daquela proposta. Afinal, fizera as advertências. 
Candidatos mais seguros e determinados encontravam-se entre três ou quatro categorias básicas da vivência humana. Alguns por verdadeira necessidade, outros por opção vantajosa ou como saída psicológica, e as vítimas da curiosidade. Assim, eram comuns os desenganados pela saúde, em vias de morte certa e agendada; os condenados a penas extremas sem possibilidades de apelação; os desiludidos, casmurros e suicidas; e afinal os meramente curiosos.
- Entonce... Vosmecê deve de arranjá um bode preto...
- Pode ser cabra ou cabrito?...
- Não!... Eu disse Bode!...
- Tudo bem... Amanhã mesmo trago...
- Calma lá!... É p’ra sê sacrificado numa meia noite de Lua Azul...
- Lua Azul?!...
- Vai tê tempo de sabê... De preferência  com céu limpo e sem nuvem, p’ra aproveitá bem as energia... Se tiver tempestade com relâmpago no final... É bom sinal...
- Só isso?...
- Venha com roupa branca e tenha uma semana de resguardo, sem bebida, sexo e nem alimento colorido... Carne, nem pensá... Apareça um dia antes... P’ros preparativo...
- Preparativos?!...
- Sim!... Isto mesmo... Vai aprendê e decorá a oração certa que tem que dizê na hora...
- E... O que mais?...
- Aproveita o tempo e pensa bem... Antes de arrumá o bode.
O velho negro era sincero, honesto e bom conselheiro. Não interessava em aproveitar-se dos incautos. Mas aproveitava bem a oferta que lhe proporcionavam.
Rolaram as datas até configurar-se o astral preconizado. E, lá veio o candidato, com o bode e imaculado como virgem.  Só estava bastante suado, e foi logo dizendo.
- Puxa!... Como é difícil arrastar esse bicho teimoso...
- O jejum não era p’ro bode... Com uma espiga de milho, e de grão em grão, v’mcê tinha ele aqui numa boa... Faz parte do aprendizado... Desde a hora que arrumou a criatura começou a função...
O tom irônico de Matheus Alencar era uma característica natural, sem manifestar-se ofensivo. Da mesma forma conferiu as demais encomendas e concluiu reiterando.

- Pensou bastante?...
- Hã! Hã!... – Foi a resposta apressada.
- Entonce... Vamo p’ra diante... Agora, pega o machado e vai ajuntá lenha e madeira p'ra fazê uma fogueira boa... Temo que torrá o bicho até virá cinza...
Ao final da tarde havia-se formado uma pilha considerável de troncos e galhos suficientes. A palidez do rosto camuflava-se juntamente com a alvura das vestes, tornados acinzentados pela fuligem e poeira assentados pelo suor. A brancura dos olhos cansados destacava-se então com aspecto fantasmagórico.
Sincronizada, passou a elevar-se no horizonte a impressionante esfera da Lua.
Denominava-se Azul pelas particularidades de data e ocorrência especial no calendário. Por sua aparência não se distinguia das outras consideradas normais, e passaria despercebida aos não iniciados. Aos conhecedores impunha-se respeitosa e significativa, agigantando-se em seu tom alaranjado forte e brilhante como se fosse um segundo sol, amigo das trevas.   

- Agora... enquanto descansa o corpo, vai decorá isto aqui... p’ra dizê na hora... – indicou o velho negro, entregando um pergaminho em farrapos e acrescentou – Os nome estranho não precisa entendê... basta sabê dizê... As palavra conhecida... mais do entendê... tem que sentir p’ra dizê...
Ato contínuo apossou-se de um atabaque que passou a percutir enlaçado com as pernas, enquanto mirava a lua como numa invocação.

Passado algum tempo interrompeu o batuque com a aproximação do voluntário e inquiriu.

- Decorô direitinho?... Entendeu bem o compromisso?...
- Sim... Sinhô... – foi a resposta hesitante e insegura da voz embargada.
- Entonce... Vai fumando esse cigarrinho... enquanto preparo um chá de erva que vai tê que tomá... – completou o ancião entregando um charuto de folhas característico.
Já inebriado pela acre fumaça inalada, recebeu do negro uma cuia contendo um líquido esverdeado e escuro com odores de terra molhada e foi aconselhado.

- Vai tomando devagarinho p’ra não engasgá... E, enquanto descansa o bucho, vai ajeitando a madeira que já vai’stá na hora de acendê a fogueira...
Depois de também inalar alguns tragos do misterioso cigarro de erva o negro retomou o batuquear, mais animado e ritmado com uma variação de arranjos sonoros.

Contagiado pela animação sonora, bem como pelos efeitos das ervas inalada e tomada, o agora já principiado do mundo das magias pareceu ter superado o abalo psíquico e emocional provocado pelos dizeres encontrados no pergaminho. Enquanto montava a pilha pirófora dançava voluptuoso com cada galho e tronco transportado.

Percebendo a alteração de comportamento o velho negro incrementou ainda mais a sonoridade do batuque. Com repiques e retornos de duração e intensidade acompanhava e era seguido pela ginga corporal em sua sensualidade vegetal.

O disco lunar restringira-se como uma pupila ótica em seu diâmetro, intensificando-se em luminosidade e brancura... Já alto no céu, inscrevia no solo sombras escuras e bem definidas... E projetava a animação dançarina com lubricidade sobrenatural.

- Já podemo pô fogo nos pau...
A observação de Matheus Alencar coincidiu com um lamentoso gaguejar do bode, como se pressentisse seu destino fúnebre. 
Despertada pela pequena chama iniciada na base do arranjo sacrifical, uma coluna de fumo escuro elevou-se na direção do astro que presidia o cerimonial. Ato contínuo, inebriada pela fumaça que subia em sua direção a imagem da Lua tomou participação ativa na dança que ocorria em baixo. Tremeluzindo, ofuscava-se, entreabrindo-se em matizes variados e vez ou outra ondulava-se como se também bailasse.

Quando as sombras encurtaram-se até quase aos pés o ancião ordenou:

- Traga o bicho até aqui... Pega a faca e deita debaixo dele... Segura bem nas barbicha... E corta a goela da oferenda...
- Mas... Assim, vou ficar todo sujo de sangue...
- Sujo, não... Sujo, até que v’mce já’stá devéra... Agora vai ficá é tinto e besuntado... E aproveita bem a ducha e se vira p’ra ficá bem     tingido... dos pé ao pescoço... e dos carcanhá até a nuca... Quanto mais bem pintado... mais garantida a função...
Meneando a cabeça como quase um arrependimento, mas achando ainda suporte psicológico no transe em que se encontrava, o voluntário foi até à oferenda que o encarou interrogativo.

- Beéé... ee... ee... éé?...
- Ora... Vamos lá... Bicho azarado...
Auxiliado pelo ancião que segurou o animal pelos chifres e convenientemente posicionado em baixo, o iniciante acionou a lâmina afiada.

Um esguicho quente foi acompanhado pelo gorgolejar tossido e  uma tentativa de reação do animal, prontamente dominada.

- Jogue a faca longe e se vire o que mais possa aí embaixo – determinou Matheus Alencar.
Como parafuso num movimento de ir e vir, e na medida do que lhe foi possível, o agora já iniciado rodopiou lubricamente entre as patas de pelo luzidio.  

Quando a vítima desfaleceu-se completamente tendo as últimas gotas do sangue esvaídas, o velho negro depositou-a do lado e comentou observando o postulante já em pé.

- É... Até que ficou bem tingido... Isso é bom p’ros efeito... Apontando a faca caída no chão ao lado, continuou.

- Agora, tira o couro do bicho... No capricho p’ra não fazê furo a toa, e dar numa capa boa... E não vá se esquecendo de fazê as reza...
- Dito isto M. Alencar acocorou-se e reascendendo o cigarrinho tirou mais alguns tragos, longos e demorados. Em seguida retomou as batidas ritmadas no atabaque enquanto olhava o luar.
- Pronto... Aqui está o couro...
- Ponha direito nas costas... Puxe o bicho nas brasa... e toque mais lenha em cima...
A colocação do animal esfolado nas chamas provocou um chiado e um surto de faíscas vermelhas que se elevaram rodopiando animadas.

Entregando a cuia contendo a poção vegetal, emendou.

- Beba mais uns gole... E depois pite mais um pouco... Sempre rezando...
O cheiro de sangue e da carne trouxeram as presenças negras do felino e do cão Netuno. Ambos postaram-se sentados e diametralmente opostos, admirando as chamas e o cadáver da vítima que se consumia entre as labaredas vermelhas.

A movimentação inusitada no local bem como odores que lhe eram igualmente apetitosos, atraíram também a coruja buraqueira. Com seu piar longo e gaguejado sobrevoou o cenário e postou-se curiosa na ponta de um moerão, adicionando a fantasmagórica contribuição, num trio de enormes olhares fixos e vidrados.

- He!... He!... He!... O’hia que o negócio s’tá ficando bão!...
Foi o comentário de satisfação à notada presença daquelas três testemunhas.

As sombras alongavam-se novamente, diametralmente opostas pelo correr das horas e ouviu-se um galo cantar ao longe. Imediatamente o dono do terreiro próximo entoou sua resposta, roufenho.

Observando o torrão escuro em que se transformara o corpo do caprino imolado, o ali mestre da cerimônia determinou.

- Arranca o bicho das brasa... Tira o coração... E come...
Àquela altura dos acontecimentos nada além, por estranho que fosse, impressionava o ademais faminto e jejuado pupilo.

Com determinação renovada cumpriu a sequência de atos com movimentos espertos, e foi então advertido.

- Vai devagar... que seu bucho s’tá fraco...
Sentindo na garganta a realidade da advertência o iniciado se conteve. E passou a mastigar com a devida calma cada naco arrancado com os dentes.

Quando a Lua tangenciou o horizonte ocidental, quase já só havia um monturo cinzento que cobria um braseiro quente e colorido.

- Vá aproveitando a cinza do bicho... E se besunte bem... O melhor  que pudé... Na cara... Pescoço... Mão... Enfim... Toda parte do corpo que não tivé cobertura de roupa...
Observando a figura final resultante, Matheus Alencar não conteve um sorriso de ironia e satisfação. Com a capa peluda de couro do bode nas costas, estava ali configurado um espantoso, verdadeiro e horripilante Drácula do Sertão.

- Agora... Suma... Antes que o Sol apareça...
Obedecendo a um gesto do ancião, orquestradamente o gato emitiu um miado rouco, imediatamente acompanhado por um uivo longo do cão Netuno e pelo piar sarcástico da coruja.

Ato contínuo, a um levantar do seu dedo indicador como se mostrasse o céu, ouviu-se o canto matutino do galo alertando a hora. Lembrando-se num relance repentino de todas as advertências que ouvira, o monstrengo caracterizado, arregalando os olhos, virou-se numa desabalada carreira procurando abrigo, esconderijo e proteção.

O negro então retirou-se, acompanhado pelos animais.

Nos horizontes do poente tremeluziam relâmpagos longínquos, como se lá de traz das montanhas a Lua acenasse com derradeiros sinais.

Quem por ali estivesse ouviria um murmúrio, como um diálogo entre velhos amigos, misturando uma risadinha do velho, um ronronar do gato, curtos latidos do cão e voejando por cima, o piado irônico da coruja.


********


sábado, 24 de setembro de 2016

PACTO COM O DEMO

          - O diabo convocou-me e não aceitei o convite... E ficou macho comigo
...
          - Ora... Zeca... Cuide-se com as palavras.

          - Mas... Foi o que aconteceu... Propôs aliança, mas preferi a ralação.

          - Pacto com o demo é sempre de alto risco...

          - Minha contraproposta ele não aceitou...

          - Que argumento foi o seu?

          - O inverso de todos que pedem apoio divino para faturar na loto...

          - Como assim? Explique melhor...

          - Todos pedem e prometem ajuda hipócrita a todos necessitados... Uso do dinheiro em grandes obras produtivas... E somente incentivar bons comportamentos.

          - É um entendimento conveniente...

          - Mas geralmente falso e interesseiro...

          - É... Pode ser... Humanamente natural... E... Muitas vezes o atendimento do pedido, vem para ser motivo de ruína e desgraça...

          - Pois, minha avó já dizia... Que dinheiro precisa ser ganho com trabalho... Para Deus só se pede saúde, paz e que não falte o necessário pão de cada dia.

          - Este é o contido na principal das orações.

          - Então... Sendo assim... A alternativa é o Demo.

          - Só que... Pacto com o Diabo é jogo de alto risco e insegurança...

          - Foi aí que contra-argumentei ao tinhoso...

          - Em que termos?... Estou já até curioso.

          - Sem comprometer a alma... Lembrei-me de um fato acontecido...


 . . . . . . . 



          - Estava um entardecer chuvoso e já escuro, quando ouvi soar a sineta do portão e fui ao atendimento. Ao abrir a porta, veio-me um bafo molhado e serenado, de cachaça e muitos dias sem banho e higiene. Reconheci a figura de um negro ainda novo e magricela, do qual sabia tratar-se de enfermeiro ocasional, mas de alta categoria e prática profissional. Num gesto automático, apontei-lhe o dedo e afirmei-lhe o reconhecimento. Arregalou os olhos de susto e quase saiu voando. Emendei a seguir que podia acalmar-se, que eu não era da polícia, e o reconhecia de profissão. Depois de longo suspiro de alívio e conversa entabulada, passou a contar-me o seu infortunado destino. Família desarticulada por intrometidos e filhos perdidos. Bebida e drogas de toda natureza passaram a freqüentar-lhe os dias de um viver frustrado. Depois de mais alguns detalhes daquele viver insólito, dei-lhe o ajutório pedido, que nem queria mais aceitar. E, o episódio serviu-me de guia para o pactuar.

          - Então diga logo, qual foi a proposta recusada?

          - Sem comprometer a alma... Num contraponto das propostas ortodoxas...

          - Sim... Então diga logo qual foi...

          - Não ajudo ninguém... Só gasto o dinheiro em farra... E não nego pinga a pinguço.

          - Éé... Até porque existe a estória da proteção privilegiada dos pinguços... 


 * * * * * * * *