terça-feira, 25 de outubro de 2016

A MANDINGA

- Quero!... Quero!
Aquela atitude não soou estranha para Matheus Alencar. Conhecia ele a ousadia do tipo. Os sensatos, maduros e equilibrados, em regra declinavam daquela proposta. Afinal, fizera as advertências. 
Candidatos mais seguros e determinados encontravam-se entre três ou quatro categorias básicas da vivência humana. Alguns por verdadeira necessidade, outros por opção vantajosa ou como saída psicológica, e as vítimas da curiosidade. Assim, eram comuns os desenganados pela saúde, em vias de morte certa e agendada; os condenados a penas extremas sem possibilidades de apelação; os desiludidos, casmurros e suicidas; e afinal os meramente curiosos.
- Entonce... Vosmecê deve de arranjá um bode preto...
- Pode ser cabra ou cabrito?...
- Não!... Eu disse Bode!...
- Tudo bem... Amanhã mesmo trago...
- Calma lá!... É p’ra sê sacrificado numa meia noite de Lua Azul...
- Lua Azul?!...
- Vai tê tempo de sabê... De preferência  com céu limpo e sem nuvem, p’ra aproveitá bem as energia... Se tiver tempestade com relâmpago no final... É bom sinal...
- Só isso?...
- Venha com roupa branca e tenha uma semana de resguardo, sem bebida, sexo e nem alimento colorido... Carne, nem pensá... Apareça um dia antes... P’ros preparativo...
- Preparativos?!...
- Sim!... Isto mesmo... Vai aprendê e decorá a oração certa que tem que dizê na hora...
- E... O que mais?...
- Aproveita o tempo e pensa bem... Antes de arrumá o bode.
O velho negro era sincero, honesto e bom conselheiro. Não interessava em aproveitar-se dos incautos. Mas aproveitava bem a oferta que lhe proporcionavam.
Rolaram as datas até configurar-se o astral preconizado. E, lá veio o candidato, com o bode e imaculado como virgem.  Só estava bastante suado, e foi logo dizendo.
- Puxa!... Como é difícil arrastar esse bicho teimoso...
- O jejum não era p’ro bode... Com uma espiga de milho, e de grão em grão, v’mcê tinha ele aqui numa boa... Faz parte do aprendizado... Desde a hora que arrumou a criatura começou a função...
O tom irônico de Matheus Alencar era uma característica natural, sem manifestar-se ofensivo. Da mesma forma conferiu as demais encomendas e concluiu reiterando.

- Pensou bastante?...
- Hã! Hã!... – Foi a resposta apressada.
- Entonce... Vamo p’ra diante... Agora, pega o machado e vai ajuntá lenha e madeira p'ra fazê uma fogueira boa... Temo que torrá o bicho até virá cinza...
Ao final da tarde havia-se formado uma pilha considerável de troncos e galhos suficientes. A palidez do rosto camuflava-se juntamente com a alvura das vestes, tornados acinzentados pela fuligem e poeira assentados pelo suor. A brancura dos olhos cansados destacava-se então com aspecto fantasmagórico.
Sincronizada, passou a elevar-se no horizonte a impressionante esfera da Lua.
Denominava-se Azul pelas particularidades de data e ocorrência especial no calendário. Por sua aparência não se distinguia das outras consideradas normais, e passaria despercebida aos não iniciados. Aos conhecedores impunha-se respeitosa e significativa, agigantando-se em seu tom alaranjado forte e brilhante como se fosse um segundo sol, amigo das trevas.   

- Agora... enquanto descansa o corpo, vai decorá isto aqui... p’ra dizê na hora... – indicou o velho negro, entregando um pergaminho em farrapos e acrescentou – Os nome estranho não precisa entendê... basta sabê dizê... As palavra conhecida... mais do entendê... tem que sentir p’ra dizê...
Ato contínuo apossou-se de um atabaque que passou a percutir enlaçado com as pernas, enquanto mirava a lua como numa invocação.

Passado algum tempo interrompeu o batuque com a aproximação do voluntário e inquiriu.

- Decorô direitinho?... Entendeu bem o compromisso?...
- Sim... Sinhô... – foi a resposta hesitante e insegura da voz embargada.
- Entonce... Vai fumando esse cigarrinho... enquanto preparo um chá de erva que vai tê que tomá... – completou o ancião entregando um charuto de folhas característico.
Já inebriado pela acre fumaça inalada, recebeu do negro uma cuia contendo um líquido esverdeado e escuro com odores de terra molhada e foi aconselhado.

- Vai tomando devagarinho p’ra não engasgá... E, enquanto descansa o bucho, vai ajeitando a madeira que já vai’stá na hora de acendê a fogueira...
Depois de também inalar alguns tragos do misterioso cigarro de erva o negro retomou o batuquear, mais animado e ritmado com uma variação de arranjos sonoros.

Contagiado pela animação sonora, bem como pelos efeitos das ervas inalada e tomada, o agora já principiado do mundo das magias pareceu ter superado o abalo psíquico e emocional provocado pelos dizeres encontrados no pergaminho. Enquanto montava a pilha pirófora dançava voluptuoso com cada galho e tronco transportado.

Percebendo a alteração de comportamento o velho negro incrementou ainda mais a sonoridade do batuque. Com repiques e retornos de duração e intensidade acompanhava e era seguido pela ginga corporal em sua sensualidade vegetal.

O disco lunar restringira-se como uma pupila ótica em seu diâmetro, intensificando-se em luminosidade e brancura... Já alto no céu, inscrevia no solo sombras escuras e bem definidas... E projetava a animação dançarina com lubricidade sobrenatural.

- Já podemo pô fogo nos pau...
A observação de Matheus Alencar coincidiu com um lamentoso gaguejar do bode, como se pressentisse seu destino fúnebre. 
Despertada pela pequena chama iniciada na base do arranjo sacrifical, uma coluna de fumo escuro elevou-se na direção do astro que presidia o cerimonial. Ato contínuo, inebriada pela fumaça que subia em sua direção a imagem da Lua tomou participação ativa na dança que ocorria em baixo. Tremeluzindo, ofuscava-se, entreabrindo-se em matizes variados e vez ou outra ondulava-se como se também bailasse.

Quando as sombras encurtaram-se até quase aos pés o ancião ordenou:

- Traga o bicho até aqui... Pega a faca e deita debaixo dele... Segura bem nas barbicha... E corta a goela da oferenda...
- Mas... Assim, vou ficar todo sujo de sangue...
- Sujo, não... Sujo, até que v’mce já’stá devéra... Agora vai ficá é tinto e besuntado... E aproveita bem a ducha e se vira p’ra ficá bem     tingido... dos pé ao pescoço... e dos carcanhá até a nuca... Quanto mais bem pintado... mais garantida a função...
Meneando a cabeça como quase um arrependimento, mas achando ainda suporte psicológico no transe em que se encontrava, o voluntário foi até à oferenda que o encarou interrogativo.

- Beéé... ee... ee... éé?...
- Ora... Vamos lá... Bicho azarado...
Auxiliado pelo ancião que segurou o animal pelos chifres e convenientemente posicionado em baixo, o iniciante acionou a lâmina afiada.

Um esguicho quente foi acompanhado pelo gorgolejar tossido e  uma tentativa de reação do animal, prontamente dominada.

- Jogue a faca longe e se vire o que mais possa aí embaixo – determinou Matheus Alencar.
Como parafuso num movimento de ir e vir, e na medida do que lhe foi possível, o agora já iniciado rodopiou lubricamente entre as patas de pelo luzidio.  

Quando a vítima desfaleceu-se completamente tendo as últimas gotas do sangue esvaídas, o velho negro depositou-a do lado e comentou observando o postulante já em pé.

- É... Até que ficou bem tingido... Isso é bom p’ros efeito... Apontando a faca caída no chão ao lado, continuou.

- Agora, tira o couro do bicho... No capricho p’ra não fazê furo a toa, e dar numa capa boa... E não vá se esquecendo de fazê as reza...
- Dito isto M. Alencar acocorou-se e reascendendo o cigarrinho tirou mais alguns tragos, longos e demorados. Em seguida retomou as batidas ritmadas no atabaque enquanto olhava o luar.
- Pronto... Aqui está o couro...
- Ponha direito nas costas... Puxe o bicho nas brasa... e toque mais lenha em cima...
A colocação do animal esfolado nas chamas provocou um chiado e um surto de faíscas vermelhas que se elevaram rodopiando animadas.

Entregando a cuia contendo a poção vegetal, emendou.

- Beba mais uns gole... E depois pite mais um pouco... Sempre rezando...
O cheiro de sangue e da carne trouxeram as presenças negras do felino e do cão Netuno. Ambos postaram-se sentados e diametralmente opostos, admirando as chamas e o cadáver da vítima que se consumia entre as labaredas vermelhas.

A movimentação inusitada no local bem como odores que lhe eram igualmente apetitosos, atraíram também a coruja buraqueira. Com seu piar longo e gaguejado sobrevoou o cenário e postou-se curiosa na ponta de um moerão, adicionando a fantasmagórica contribuição, num trio de enormes olhares fixos e vidrados.

- He!... He!... He!... O’hia que o negócio s’tá ficando bão!...
Foi o comentário de satisfação à notada presença daquelas três testemunhas.

As sombras alongavam-se novamente, diametralmente opostas pelo correr das horas e ouviu-se um galo cantar ao longe. Imediatamente o dono do terreiro próximo entoou sua resposta, roufenho.

Observando o torrão escuro em que se transformara o corpo do caprino imolado, o ali mestre da cerimônia determinou.

- Arranca o bicho das brasa... Tira o coração... E come...
Àquela altura dos acontecimentos nada além, por estranho que fosse, impressionava o ademais faminto e jejuado pupilo.

Com determinação renovada cumpriu a sequência de atos com movimentos espertos, e foi então advertido.

- Vai devagar... que seu bucho s’tá fraco...
Sentindo na garganta a realidade da advertência o iniciado se conteve. E passou a mastigar com a devida calma cada naco arrancado com os dentes.

Quando a Lua tangenciou o horizonte ocidental, quase já só havia um monturo cinzento que cobria um braseiro quente e colorido.

- Vá aproveitando a cinza do bicho... E se besunte bem... O melhor  que pudé... Na cara... Pescoço... Mão... Enfim... Toda parte do corpo que não tivé cobertura de roupa...
Observando a figura final resultante, Matheus Alencar não conteve um sorriso de ironia e satisfação. Com a capa peluda de couro do bode nas costas, estava ali configurado um espantoso, verdadeiro e horripilante Drácula do Sertão.

- Agora... Suma... Antes que o Sol apareça...
Obedecendo a um gesto do ancião, orquestradamente o gato emitiu um miado rouco, imediatamente acompanhado por um uivo longo do cão Netuno e pelo piar sarcástico da coruja.

Ato contínuo, a um levantar do seu dedo indicador como se mostrasse o céu, ouviu-se o canto matutino do galo alertando a hora. Lembrando-se num relance repentino de todas as advertências que ouvira, o monstrengo caracterizado, arregalando os olhos, virou-se numa desabalada carreira procurando abrigo, esconderijo e proteção.

O negro então retirou-se, acompanhado pelos animais.

Nos horizontes do poente tremeluziam relâmpagos longínquos, como se lá de traz das montanhas a Lua acenasse com derradeiros sinais.

Quem por ali estivesse ouviria um murmúrio, como um diálogo entre velhos amigos, misturando uma risadinha do velho, um ronronar do gato, curtos latidos do cão e voejando por cima, o piado irônico da coruja.


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