terça-feira, 25 de outubro de 2016

A TRANSAÇÃO DE MATHEUS ALENCAR

O velho e rijo Matheus Alencar vivia solitário em sua cabana. A choupana, construída com os materiais naturais existentes no local, era o modelo comum das demais moradias caboclas da região.
De um lado, um pouco acima, ficavam esparsas as fruteiras comuns: Goiabas, mangueiras, jabuticabas, ateiras, pitangas e outras variedades locais, constantemente visitadas pelos sanhaços, sabiás e saíras coloridas. Nas forquilhas dos galhos mais baixos escoravam-se os ninhos de taquara, com paus roliços de acesso ao solo. Nas sombras ciscavam e espojavam algumas galinhas, pacíficas, capitaneadas por um galo vermelho, atento e autoritário com tudo à sua volta.
À beira do terreiro de chão batido erguia-se uma paliçada de bambus. Guarnecia a pequena horta vigiada pela cabeça oca de uma rês... A ponta branca de um dos chifres era o posto preferido de um canário  cabeça de fogo, onde trinava vigilante.
Entre as varas da cerca costumava esgueirar-se inquieta a diminuta corruíra. Aparentava sempre ares de cobiça no espaço oco da caveira bovina, mas não se atrevia à verificação de que a fêmea do canário certamente já o ocupara com seu ninho.
O regato cristalino despejava-se numa bica próxima. Corria manso através dos canteiros de verduras e desaguava abaixo em outro espaço cercado também com bambus, agora roliços, longos e dispostos num fecho horizontal. Ali dormitavam e grunhiam alguns leitões e marrãs preguiçosas.
No gramado em frente à morada pastava a cabra leiteira, contida pela corda que trazia ao pescoço. Ao seu redor perambulavam dois filhotes inquietos.
Ao fundo via-se ainda a velha mula manhosa, com fama de só aceitar no lombo o peso de seu dono. Agora catava os brotos de capim escolhidos, mantendo atentas as compridas orelhas. Postava-se como testemunha silenciosa de antigas andanças, cultivando merecido ócio e lembranças de longas jornadas.
Toda a área achava-se sob a vigilância cuidadosa e dedicada de Netuno, um enorme cão negro sempre presente nos arredores da casa. A supervisão interna cabia a um gato também negro, que mantinha ares de ser o maior responsável por ali. Através do olhar semicerrado fiscalizava a tudo e a todos.
Na parte mais alta do terreno, em seu posto preferido acima de um cupinzeiro, encontrava-se sempre a coruja buraqueira, com seu campo de visão privilegiado. Dali lograva vigiar a chegada de todos que se aproximassem. No seu giro de cabeça característico mirava tudo com precisão fixa, e gingava o corpo num balanço ameaçador, piando estridente seu alarme preventivo.
Àquela pequena gleba, situada à beira do caminho que ia dar na localidade próxima, reduzia-se o espaço ocupado pelo ancião. Na cidade, tudo diziam de misterioso a respeito da origem daquele negro de barbas e carapinhas já brancas. Até os mais velhos moradores não se lembravam de quando chegara ali. Era mesmo ele o mais antigo entre todos naquelas paragens. Se perguntado aumentava o mistério, respondendo com metáforas e metonímias à toda curiosidade banal e a tudo que não fosse de interesse direto na indagação. Tinha famas de curandeiro e não as deixava negar. Era mesmo exímio conhecedor e receitava com maestria a utilização de plantas e ervas medicinais. Na horta e à volta da casa cultivava desde a mais forte das pimentas à mais doce das ervas aromáticas. Conhecia a aplicação das mais ácidas e amargas folhas aos potentes analgésicos naturais. Dizia-se também que era feiticeiro. A isto mantinha como garantia de respeito e segurança de suas pequenas posses. Em seus animais e objetos ninguém se atrevia a colocar as mãos sem autorização.
Certa vez, instado a respeito de sua idade, seus conhecimentos e experiências, respondeu transmitindo ao curioso a seguinte proposta:
“Olha, meu filho, que nem eu sei e nem tô preocupado com isso. Aqueles passarinho lá fora também não sabe a deles e vive cantando até o fim. Lá vai bastante tempo, eu já era branco de barba e cabelo, e me apareceu aqui um home novo, mas muito esquisito. Ele também me perguntô a idade, e se eu queria fica moço outra vez. Disse que tinha o segredo p’ra isso e que podia me ensiná. Eu só precisava pensá e resolvê logo porque ele não tinha muito tempo p’ra perdê. Nunca fui de especulá à toa, mas gosto de sabê o que pode sê de meu serviço. E o que for p’ra melhorá nunca deve se desprezá. Então ele disse que eu tinha uma escolha p’ra fazê: Eu podia voltá no tempo p’ra idade que quisesse. Se tivesse disposto a repassá por tudo, de bom e de ruim, repetindo os mesmos'erro com a mesma cabeça boba, podia vivê todos anos outra vez. Se quisesse voltá sabido, experiente da vida, tinha uma troca p’ra acontecê: P’ra cada ano de acerto valia dez de desacerto, dois por vinte, e assim, assim, meia vida por metade de sabedoria... Eu só precisava escolhê. Pensei... pensei... e ele atalhou:  'Pensa logo que não tenho tempo p’ra perdê. Diga logo sim ou não, pois se ficá calado quer dizer que aceitou.' Resolvi na hora. Achei melhor deixá tudo como era e não pensá mais nessa proposta. No final das conta, quem fez o mundo devia de sabê o que tava fazendo e não convinha a gente mudá. Lembrei que Jeová era judeu e não convinha nós negociá. O que me foi dado, foi dado, e não havia por que reclamá. Até hoje vivo aprendendo e sei que vai acabá faltando ainda muito o que aprendê. Essa é a serventia da vida. Foi o que aquele moço aprendeu. No primeiro minuto de sábio foi isso que descobriu. Então ainda tinha saída, mas precisava arranjá alguém que aceitasse seu lugá. E, a pressa que ele tinha era fácil calculá. P’ra cada hora perdida era dez a lhe faltá. E p’rocê que é curioso, vai quere experimentá? ”

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