terça-feira, 1 de novembro de 2016

TEMÁTICA GERAL

- Romances -
       
- ÚLTIMOS FILHOS DE BAEL -

     - Miral Link de Solo.
     - Pena de Morte com Garantia de Eficácia.
     - Autodestruição.
     - Fagulha no Palheiro.
     - O Clone.
     - Os Últimos Filhos de Bael.

                         
- PODERIA TER SIDO DIFERENTE -
   
     - Juca Zeca Tiroca.
     - Mas, Poderia Ter Sido Diferente.
     - A Luta Continua.
     - O Guerrilheiro Heroico.
     - Consolidação da Resistência.
     - O Ataque Frontal.

- ARMAÇÃO FUNDAMENTAL -

     - A Armação Fundamental.
     - Buraco Negro.

- ESTÓRIAS DE PADRE COMARCO -
(coletânea de contos)

     - A Proteção dos Pinguços.
     - A Unidade, a Dicotomia e a Dualidade.
     - Água na Lua.
     - Assistindo o Apocalipse.
     - Baloeiro.
     - Bobeira, Loucura ou Burrice.
     - Denso ou Ralo.
     - Deus na Sacola.
     - Deus Humorista, e o Diabo, Louco.
     - Drogas, a Palavra da Medicina.
     - É Drama p´ro Gato.
     - Existir... Existe.
     - Futebol Au Au.
     - Jesus ou Judas.
     - Mascarado é Bandido.
     - Medida do Tempo.
     - Nair Sacolaro e o General Bicudo D´Alma Ferrosa.
     - O Anel do Segredo.
     - O Estrela Negra e as Anãs Brancas.
     - O Pavor e a Angústia do Bichinho.
     - Pacto com o Demo.
     - Reflexão.
     - Trindade.
     - Viver é Rascunho.

- PRIMUS -

     - A Humanidade, o Horóscopo e a Esfinge.
     - Boneca de Pano.
     - Canzoal.
     - Caverna, Templo ou Residência.
     - Cremado Seria Melhor.
     - Gnoseologia.
     - Navio Negreiro.
     - Rabo Verde.
     - De Menor.
     - Nadar e Votar.
     - O Bicho da Seda.
     - O Relógio da Vida.
     - Salário, Suor e Sangria.
     - Só Morre de Inanição.
     - Vida Boa.

- NOVOS -

     - A Presunção da Mente é Maior que o Universo.
     - Cabeça, Coração e Alma Leves.
     - Com Mais Dez e Perde o Apocalipse.
     - Deixei de Ser Besta.
     - Desesperados, mas Astuciosos.
     - Diagnose.
     - Difícil ser Magro.
     - È Drama p´ro Gato.
     - Entre Deus e o Diabo.
     - Esnobe Capital.
     - Fazenda Mundão.
     - Fernando da Gata.
     - Latifúndio Divino.
     - Mascarado é Bandido.
     - Medida do Tempo.
     - Melhor Só Pegando Onda.
     - Nossa Senhora, Protetora dos Pinguços.
     - O Anel do Segredo.
     - Ponte, Pinguela ou Corgo.
     - Preparado ou Inculto.
     - Recado, Retorno ou Definição.
     - Se Der Certo, Vai.
     - Sepulcro Caiado.
     - Tatu de Sucesso.
     - Uma Ilusão, Uma Esperança e Um Desejo.
     - Viver é Rascunho.
   
- SOBRECARGA -

     - A Sorte e o Azar.
     - Aproximadamente Três.
     - Caminho de Cigano.
     - Cego e Paraplégico.
     - Contato Consciente.
     - Difícil Esquecer.
     - Em Qual dos Mundos.
     - Era Isto que Queria.
     - Intervir é Forçar a Barra.
     - Maior é o Mundo.
     - Modificador.
     - Não Tem Fim.
     - O Que Ajunta ou Espalha.
     - O Mais Importante para Deus.
     - Santo da Terra.
     - Satisfação e Realização.

terça-feira, 25 de outubro de 2016

A TRANSAÇÃO DE MATHEUS ALENCAR

O velho e rijo Matheus Alencar vivia solitário em sua cabana. A choupana, construída com os materiais naturais existentes no local, era o modelo comum das demais moradias caboclas da região.
De um lado, um pouco acima, ficavam esparsas as fruteiras comuns: Goiabas, mangueiras, jabuticabas, ateiras, pitangas e outras variedades locais, constantemente visitadas pelos sanhaços, sabiás e saíras coloridas. Nas forquilhas dos galhos mais baixos escoravam-se os ninhos de taquara, com paus roliços de acesso ao solo. Nas sombras ciscavam e espojavam algumas galinhas, pacíficas, capitaneadas por um galo vermelho, atento e autoritário com tudo à sua volta.
À beira do terreiro de chão batido erguia-se uma paliçada de bambus. Guarnecia a pequena horta vigiada pela cabeça oca de uma rês... A ponta branca de um dos chifres era o posto preferido de um canário  cabeça de fogo, onde trinava vigilante.
Entre as varas da cerca costumava esgueirar-se inquieta a diminuta corruíra. Aparentava sempre ares de cobiça no espaço oco da caveira bovina, mas não se atrevia à verificação de que a fêmea do canário certamente já o ocupara com seu ninho.
O regato cristalino despejava-se numa bica próxima. Corria manso através dos canteiros de verduras e desaguava abaixo em outro espaço cercado também com bambus, agora roliços, longos e dispostos num fecho horizontal. Ali dormitavam e grunhiam alguns leitões e marrãs preguiçosas.
No gramado em frente à morada pastava a cabra leiteira, contida pela corda que trazia ao pescoço. Ao seu redor perambulavam dois filhotes inquietos.
Ao fundo via-se ainda a velha mula manhosa, com fama de só aceitar no lombo o peso de seu dono. Agora catava os brotos de capim escolhidos, mantendo atentas as compridas orelhas. Postava-se como testemunha silenciosa de antigas andanças, cultivando merecido ócio e lembranças de longas jornadas.
Toda a área achava-se sob a vigilância cuidadosa e dedicada de Netuno, um enorme cão negro sempre presente nos arredores da casa. A supervisão interna cabia a um gato também negro, que mantinha ares de ser o maior responsável por ali. Através do olhar semicerrado fiscalizava a tudo e a todos.
Na parte mais alta do terreno, em seu posto preferido acima de um cupinzeiro, encontrava-se sempre a coruja buraqueira, com seu campo de visão privilegiado. Dali lograva vigiar a chegada de todos que se aproximassem. No seu giro de cabeça característico mirava tudo com precisão fixa, e gingava o corpo num balanço ameaçador, piando estridente seu alarme preventivo.
Àquela pequena gleba, situada à beira do caminho que ia dar na localidade próxima, reduzia-se o espaço ocupado pelo ancião. Na cidade, tudo diziam de misterioso a respeito da origem daquele negro de barbas e carapinhas já brancas. Até os mais velhos moradores não se lembravam de quando chegara ali. Era mesmo ele o mais antigo entre todos naquelas paragens. Se perguntado aumentava o mistério, respondendo com metáforas e metonímias à toda curiosidade banal e a tudo que não fosse de interesse direto na indagação. Tinha famas de curandeiro e não as deixava negar. Era mesmo exímio conhecedor e receitava com maestria a utilização de plantas e ervas medicinais. Na horta e à volta da casa cultivava desde a mais forte das pimentas à mais doce das ervas aromáticas. Conhecia a aplicação das mais ácidas e amargas folhas aos potentes analgésicos naturais. Dizia-se também que era feiticeiro. A isto mantinha como garantia de respeito e segurança de suas pequenas posses. Em seus animais e objetos ninguém se atrevia a colocar as mãos sem autorização.
Certa vez, instado a respeito de sua idade, seus conhecimentos e experiências, respondeu transmitindo ao curioso a seguinte proposta:
“Olha, meu filho, que nem eu sei e nem tô preocupado com isso. Aqueles passarinho lá fora também não sabe a deles e vive cantando até o fim. Lá vai bastante tempo, eu já era branco de barba e cabelo, e me apareceu aqui um home novo, mas muito esquisito. Ele também me perguntô a idade, e se eu queria fica moço outra vez. Disse que tinha o segredo p’ra isso e que podia me ensiná. Eu só precisava pensá e resolvê logo porque ele não tinha muito tempo p’ra perdê. Nunca fui de especulá à toa, mas gosto de sabê o que pode sê de meu serviço. E o que for p’ra melhorá nunca deve se desprezá. Então ele disse que eu tinha uma escolha p’ra fazê: Eu podia voltá no tempo p’ra idade que quisesse. Se tivesse disposto a repassá por tudo, de bom e de ruim, repetindo os mesmos'erro com a mesma cabeça boba, podia vivê todos anos outra vez. Se quisesse voltá sabido, experiente da vida, tinha uma troca p’ra acontecê: P’ra cada ano de acerto valia dez de desacerto, dois por vinte, e assim, assim, meia vida por metade de sabedoria... Eu só precisava escolhê. Pensei... pensei... e ele atalhou:  'Pensa logo que não tenho tempo p’ra perdê. Diga logo sim ou não, pois se ficá calado quer dizer que aceitou.' Resolvi na hora. Achei melhor deixá tudo como era e não pensá mais nessa proposta. No final das conta, quem fez o mundo devia de sabê o que tava fazendo e não convinha a gente mudá. Lembrei que Jeová era judeu e não convinha nós negociá. O que me foi dado, foi dado, e não havia por que reclamá. Até hoje vivo aprendendo e sei que vai acabá faltando ainda muito o que aprendê. Essa é a serventia da vida. Foi o que aquele moço aprendeu. No primeiro minuto de sábio foi isso que descobriu. Então ainda tinha saída, mas precisava arranjá alguém que aceitasse seu lugá. E, a pressa que ele tinha era fácil calculá. P’ra cada hora perdida era dez a lhe faltá. E p’rocê que é curioso, vai quere experimentá? ”

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A MANDINGA

- Quero!... Quero!
Aquela atitude não soou estranha para Matheus Alencar. Conhecia ele a ousadia do tipo. Os sensatos, maduros e equilibrados, em regra declinavam daquela proposta. Afinal, fizera as advertências. 
Candidatos mais seguros e determinados encontravam-se entre três ou quatro categorias básicas da vivência humana. Alguns por verdadeira necessidade, outros por opção vantajosa ou como saída psicológica, e as vítimas da curiosidade. Assim, eram comuns os desenganados pela saúde, em vias de morte certa e agendada; os condenados a penas extremas sem possibilidades de apelação; os desiludidos, casmurros e suicidas; e afinal os meramente curiosos.
- Entonce... Vosmecê deve de arranjá um bode preto...
- Pode ser cabra ou cabrito?...
- Não!... Eu disse Bode!...
- Tudo bem... Amanhã mesmo trago...
- Calma lá!... É p’ra sê sacrificado numa meia noite de Lua Azul...
- Lua Azul?!...
- Vai tê tempo de sabê... De preferência  com céu limpo e sem nuvem, p’ra aproveitá bem as energia... Se tiver tempestade com relâmpago no final... É bom sinal...
- Só isso?...
- Venha com roupa branca e tenha uma semana de resguardo, sem bebida, sexo e nem alimento colorido... Carne, nem pensá... Apareça um dia antes... P’ros preparativo...
- Preparativos?!...
- Sim!... Isto mesmo... Vai aprendê e decorá a oração certa que tem que dizê na hora...
- E... O que mais?...
- Aproveita o tempo e pensa bem... Antes de arrumá o bode.
O velho negro era sincero, honesto e bom conselheiro. Não interessava em aproveitar-se dos incautos. Mas aproveitava bem a oferta que lhe proporcionavam.
Rolaram as datas até configurar-se o astral preconizado. E, lá veio o candidato, com o bode e imaculado como virgem.  Só estava bastante suado, e foi logo dizendo.
- Puxa!... Como é difícil arrastar esse bicho teimoso...
- O jejum não era p’ro bode... Com uma espiga de milho, e de grão em grão, v’mcê tinha ele aqui numa boa... Faz parte do aprendizado... Desde a hora que arrumou a criatura começou a função...
O tom irônico de Matheus Alencar era uma característica natural, sem manifestar-se ofensivo. Da mesma forma conferiu as demais encomendas e concluiu reiterando.

- Pensou bastante?...
- Hã! Hã!... – Foi a resposta apressada.
- Entonce... Vamo p’ra diante... Agora, pega o machado e vai ajuntá lenha e madeira p'ra fazê uma fogueira boa... Temo que torrá o bicho até virá cinza...
Ao final da tarde havia-se formado uma pilha considerável de troncos e galhos suficientes. A palidez do rosto camuflava-se juntamente com a alvura das vestes, tornados acinzentados pela fuligem e poeira assentados pelo suor. A brancura dos olhos cansados destacava-se então com aspecto fantasmagórico.
Sincronizada, passou a elevar-se no horizonte a impressionante esfera da Lua.
Denominava-se Azul pelas particularidades de data e ocorrência especial no calendário. Por sua aparência não se distinguia das outras consideradas normais, e passaria despercebida aos não iniciados. Aos conhecedores impunha-se respeitosa e significativa, agigantando-se em seu tom alaranjado forte e brilhante como se fosse um segundo sol, amigo das trevas.   

- Agora... enquanto descansa o corpo, vai decorá isto aqui... p’ra dizê na hora... – indicou o velho negro, entregando um pergaminho em farrapos e acrescentou – Os nome estranho não precisa entendê... basta sabê dizê... As palavra conhecida... mais do entendê... tem que sentir p’ra dizê...
Ato contínuo apossou-se de um atabaque que passou a percutir enlaçado com as pernas, enquanto mirava a lua como numa invocação.

Passado algum tempo interrompeu o batuque com a aproximação do voluntário e inquiriu.

- Decorô direitinho?... Entendeu bem o compromisso?...
- Sim... Sinhô... – foi a resposta hesitante e insegura da voz embargada.
- Entonce... Vai fumando esse cigarrinho... enquanto preparo um chá de erva que vai tê que tomá... – completou o ancião entregando um charuto de folhas característico.
Já inebriado pela acre fumaça inalada, recebeu do negro uma cuia contendo um líquido esverdeado e escuro com odores de terra molhada e foi aconselhado.

- Vai tomando devagarinho p’ra não engasgá... E, enquanto descansa o bucho, vai ajeitando a madeira que já vai’stá na hora de acendê a fogueira...
Depois de também inalar alguns tragos do misterioso cigarro de erva o negro retomou o batuquear, mais animado e ritmado com uma variação de arranjos sonoros.

Contagiado pela animação sonora, bem como pelos efeitos das ervas inalada e tomada, o agora já principiado do mundo das magias pareceu ter superado o abalo psíquico e emocional provocado pelos dizeres encontrados no pergaminho. Enquanto montava a pilha pirófora dançava voluptuoso com cada galho e tronco transportado.

Percebendo a alteração de comportamento o velho negro incrementou ainda mais a sonoridade do batuque. Com repiques e retornos de duração e intensidade acompanhava e era seguido pela ginga corporal em sua sensualidade vegetal.

O disco lunar restringira-se como uma pupila ótica em seu diâmetro, intensificando-se em luminosidade e brancura... Já alto no céu, inscrevia no solo sombras escuras e bem definidas... E projetava a animação dançarina com lubricidade sobrenatural.

- Já podemo pô fogo nos pau...
A observação de Matheus Alencar coincidiu com um lamentoso gaguejar do bode, como se pressentisse seu destino fúnebre. 
Despertada pela pequena chama iniciada na base do arranjo sacrifical, uma coluna de fumo escuro elevou-se na direção do astro que presidia o cerimonial. Ato contínuo, inebriada pela fumaça que subia em sua direção a imagem da Lua tomou participação ativa na dança que ocorria em baixo. Tremeluzindo, ofuscava-se, entreabrindo-se em matizes variados e vez ou outra ondulava-se como se também bailasse.

Quando as sombras encurtaram-se até quase aos pés o ancião ordenou:

- Traga o bicho até aqui... Pega a faca e deita debaixo dele... Segura bem nas barbicha... E corta a goela da oferenda...
- Mas... Assim, vou ficar todo sujo de sangue...
- Sujo, não... Sujo, até que v’mce já’stá devéra... Agora vai ficá é tinto e besuntado... E aproveita bem a ducha e se vira p’ra ficá bem     tingido... dos pé ao pescoço... e dos carcanhá até a nuca... Quanto mais bem pintado... mais garantida a função...
Meneando a cabeça como quase um arrependimento, mas achando ainda suporte psicológico no transe em que se encontrava, o voluntário foi até à oferenda que o encarou interrogativo.

- Beéé... ee... ee... éé?...
- Ora... Vamos lá... Bicho azarado...
Auxiliado pelo ancião que segurou o animal pelos chifres e convenientemente posicionado em baixo, o iniciante acionou a lâmina afiada.

Um esguicho quente foi acompanhado pelo gorgolejar tossido e  uma tentativa de reação do animal, prontamente dominada.

- Jogue a faca longe e se vire o que mais possa aí embaixo – determinou Matheus Alencar.
Como parafuso num movimento de ir e vir, e na medida do que lhe foi possível, o agora já iniciado rodopiou lubricamente entre as patas de pelo luzidio.  

Quando a vítima desfaleceu-se completamente tendo as últimas gotas do sangue esvaídas, o velho negro depositou-a do lado e comentou observando o postulante já em pé.

- É... Até que ficou bem tingido... Isso é bom p’ros efeito... Apontando a faca caída no chão ao lado, continuou.

- Agora, tira o couro do bicho... No capricho p’ra não fazê furo a toa, e dar numa capa boa... E não vá se esquecendo de fazê as reza...
- Dito isto M. Alencar acocorou-se e reascendendo o cigarrinho tirou mais alguns tragos, longos e demorados. Em seguida retomou as batidas ritmadas no atabaque enquanto olhava o luar.
- Pronto... Aqui está o couro...
- Ponha direito nas costas... Puxe o bicho nas brasa... e toque mais lenha em cima...
A colocação do animal esfolado nas chamas provocou um chiado e um surto de faíscas vermelhas que se elevaram rodopiando animadas.

Entregando a cuia contendo a poção vegetal, emendou.

- Beba mais uns gole... E depois pite mais um pouco... Sempre rezando...
O cheiro de sangue e da carne trouxeram as presenças negras do felino e do cão Netuno. Ambos postaram-se sentados e diametralmente opostos, admirando as chamas e o cadáver da vítima que se consumia entre as labaredas vermelhas.

A movimentação inusitada no local bem como odores que lhe eram igualmente apetitosos, atraíram também a coruja buraqueira. Com seu piar longo e gaguejado sobrevoou o cenário e postou-se curiosa na ponta de um moerão, adicionando a fantasmagórica contribuição, num trio de enormes olhares fixos e vidrados.

- He!... He!... He!... O’hia que o negócio s’tá ficando bão!...
Foi o comentário de satisfação à notada presença daquelas três testemunhas.

As sombras alongavam-se novamente, diametralmente opostas pelo correr das horas e ouviu-se um galo cantar ao longe. Imediatamente o dono do terreiro próximo entoou sua resposta, roufenho.

Observando o torrão escuro em que se transformara o corpo do caprino imolado, o ali mestre da cerimônia determinou.

- Arranca o bicho das brasa... Tira o coração... E come...
Àquela altura dos acontecimentos nada além, por estranho que fosse, impressionava o ademais faminto e jejuado pupilo.

Com determinação renovada cumpriu a sequência de atos com movimentos espertos, e foi então advertido.

- Vai devagar... que seu bucho s’tá fraco...
Sentindo na garganta a realidade da advertência o iniciado se conteve. E passou a mastigar com a devida calma cada naco arrancado com os dentes.

Quando a Lua tangenciou o horizonte ocidental, quase já só havia um monturo cinzento que cobria um braseiro quente e colorido.

- Vá aproveitando a cinza do bicho... E se besunte bem... O melhor  que pudé... Na cara... Pescoço... Mão... Enfim... Toda parte do corpo que não tivé cobertura de roupa...
Observando a figura final resultante, Matheus Alencar não conteve um sorriso de ironia e satisfação. Com a capa peluda de couro do bode nas costas, estava ali configurado um espantoso, verdadeiro e horripilante Drácula do Sertão.

- Agora... Suma... Antes que o Sol apareça...
Obedecendo a um gesto do ancião, orquestradamente o gato emitiu um miado rouco, imediatamente acompanhado por um uivo longo do cão Netuno e pelo piar sarcástico da coruja.

Ato contínuo, a um levantar do seu dedo indicador como se mostrasse o céu, ouviu-se o canto matutino do galo alertando a hora. Lembrando-se num relance repentino de todas as advertências que ouvira, o monstrengo caracterizado, arregalando os olhos, virou-se numa desabalada carreira procurando abrigo, esconderijo e proteção.

O negro então retirou-se, acompanhado pelos animais.

Nos horizontes do poente tremeluziam relâmpagos longínquos, como se lá de traz das montanhas a Lua acenasse com derradeiros sinais.

Quem por ali estivesse ouviria um murmúrio, como um diálogo entre velhos amigos, misturando uma risadinha do velho, um ronronar do gato, curtos latidos do cão e voejando por cima, o piado irônico da coruja.


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sábado, 24 de setembro de 2016

PACTO COM O DEMO

          - O diabo convocou-me e não aceitei o convite... E ficou macho comigo
...
          - Ora... Zeca... Cuide-se com as palavras.

          - Mas... Foi o que aconteceu... Propôs aliança, mas preferi a ralação.

          - Pacto com o demo é sempre de alto risco...

          - Minha contraproposta ele não aceitou...

          - Que argumento foi o seu?

          - O inverso de todos que pedem apoio divino para faturar na loto...

          - Como assim? Explique melhor...

          - Todos pedem e prometem ajuda hipócrita a todos necessitados... Uso do dinheiro em grandes obras produtivas... E somente incentivar bons comportamentos.

          - É um entendimento conveniente...

          - Mas geralmente falso e interesseiro...

          - É... Pode ser... Humanamente natural... E... Muitas vezes o atendimento do pedido, vem para ser motivo de ruína e desgraça...

          - Pois, minha avó já dizia... Que dinheiro precisa ser ganho com trabalho... Para Deus só se pede saúde, paz e que não falte o necessário pão de cada dia.

          - Este é o contido na principal das orações.

          - Então... Sendo assim... A alternativa é o Demo.

          - Só que... Pacto com o Diabo é jogo de alto risco e insegurança...

          - Foi aí que contra-argumentei ao tinhoso...

          - Em que termos?... Estou já até curioso.

          - Sem comprometer a alma... Lembrei-me de um fato acontecido...


 . . . . . . . 



          - Estava um entardecer chuvoso e já escuro, quando ouvi soar a sineta do portão e fui ao atendimento. Ao abrir a porta, veio-me um bafo molhado e serenado, de cachaça e muitos dias sem banho e higiene. Reconheci a figura de um negro ainda novo e magricela, do qual sabia tratar-se de enfermeiro ocasional, mas de alta categoria e prática profissional. Num gesto automático, apontei-lhe o dedo e afirmei-lhe o reconhecimento. Arregalou os olhos de susto e quase saiu voando. Emendei a seguir que podia acalmar-se, que eu não era da polícia, e o reconhecia de profissão. Depois de longo suspiro de alívio e conversa entabulada, passou a contar-me o seu infortunado destino. Família desarticulada por intrometidos e filhos perdidos. Bebida e drogas de toda natureza passaram a freqüentar-lhe os dias de um viver frustrado. Depois de mais alguns detalhes daquele viver insólito, dei-lhe o ajutório pedido, que nem queria mais aceitar. E, o episódio serviu-me de guia para o pactuar.

          - Então diga logo, qual foi a proposta recusada?

          - Sem comprometer a alma... Num contraponto das propostas ortodoxas...

          - Sim... Então diga logo qual foi...

          - Não ajudo ninguém... Só gasto o dinheiro em farra... E não nego pinga a pinguço.

          - Éé... Até porque existe a estória da proteção privilegiada dos pinguços... 


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quarta-feira, 2 de abril de 2014

DO FRESCOBOL AO JETSKI

Proibitivos ou deveras proibidos... Necessários e até úteis ou supérfluos e inúteis. Convenientes ou inconvenientes... Essenciais ou desnecessários?... Baníveis ou permissíveis?...
O leque dos itens e das indagações pode atingir o enfado... O essencial, todavia, pode ainda permanecer oculto ou só e apenas comodamente no esquecimento. O que determina ou dá prioridade?... O que mobiliza e o que acomoda?... O que já nasce e vem com cara de fruto proibitivo? Ou o que precisa e necessita provocar, até mesmo matando aos estreantes inocentes, para só daí então vir a ser considerado perigoso e até potencialmente fatal? Para completar e assinalar frisando o enfoque dado ao início acrescente-se perguntar quais deverão ser as atitudes e medidas a serem adotadas?
Sinto-me já curioso, apreensivo e cauteloso só em imaginar. Agora é a ocasião da ocorrência dos fatos. Quando esta indagação for tornada em conhecimento já terá decorrido algum tempo... E, então?... O que aconteceu? Foram proibidos, banidos e colocados fora da lei ou tiveram a posse e a utilização somente restritas e regulamentadas? Ou nem isto, ainda? Cair no comum esquecimento não será possível e permitido ao caso tendo em vista a natureza da ocorrência. Esta não será a última e passível de se olvidar porque virá a repetir-se inexorável com a mesma persistência de sua previsibilidade.
Estou em referência óbvia ao uso e abuso dos conhecidos veículos moto-aquáticos, denominados singela e amavelmente de jetskis. E ao fato trágico da morte de uma criança, ainda menina de quatro anos de idade em seu primeiro dia de praia na vida, quando foi atropelada e...  Morta.
Teria efetiva necessidade de tão danosa ocorrência material para evidenciar a potencial periculosidade em meio a uma densa e descontraída presença humana?
Por seu lado, o frescobol teve necessidade de liquidar tão somente a tranquilidade e a despreocupação com sua pequena bola de borracha para se tornar inconveniente e vir a ser socialmente banido. Fico inteiramente favorável à interdição. É deveras perigoso se considerar-se a consequência de uma bolada no nariz ou num olho. Mas, ao comparar-se com o abalroar moto-náutico de algo movido a jato, fica-se a indagar explicações.
Poderia ter escolhido a peteca como objeto virtual danoso, mas como tanto suas características operacionais, seu âmbito de exercício e o grau de incomodar sejam similares, mantenhamos os parâmetros já estabelecidos.
Estabelecidos assim tais parâmetros marginais, passemos a considerar o miolo da questão.
Qual vem a ser a escala de valores? Quais as motivações efetivas psíquicas e psicológicas, mentais e emocionais, sociais ou materiais, econômicas ou políticas, religiosas ou filosóficas a estabelecerem limites lógicos e razoáveis? O que determinaria a preocupação com o necessário e até o indispensável? E o que motiva e explica o zelo banal com a mesquinharia e o supérfluo dispensável? Existem indiscutivelmente os fatos e questões razoáveis, afinal não estamos diante da loucura total e desbragada, caso este em que a inviabilidade já estaria estabelecida e efetivada, embora pareça estar faltando pouco. Porém, persistem simultaneamente as falhas inexplicáveis e permanentes, enquanto florescem gratuitas e sobejamente as flores do mal.
Para citar alguns exemplos de ambas as situações indicadas e não pairar dúvidas vai-se ao elenco possível, constatando agora no ato, que para cada caso necessário e indispensável ocorreram-me diversos dos supérfluos dispensáveis, ou discutíveis, ao menos sanguinária e fisicamente inócuos.
Assim, teremos:
Jetski / Frescobol. Armas de fogo(com registro e porte) / Idem(sem papéis). Armas brancas e porretes / Topless, nudismo. Álcool e nicotina / Fuminho maroto. Agressivos e estressados ao volante (habilitados) / Utilização de bermudas, chinelos, óculos,   cadeirinhas, estojos de primeiro socorro, cintos de segurança, luzes e lampadinhas. Matar o guarda florestal (crime afiançável) / Derrubar árvore ou caçar um tiziu ou tico-tico (inafiançável).
Sinto interromper tanto a citação quanto a indicação, porém ocorre-me a necessidade de lembrar que o fato não é novo ou nem atual e moderno. Já desde eras egípcias e babilônicas encontraremos relatos, lendas e história em torno. Em registros legais petrificados como o caso da conhecida Pedra de Roseta na qual Champollion clareia tradução aos enigmáticos hieróglifos temos banalidades tratadas. Escritos doutrinários de preceitos orientais não escapam. Livros religiosos bíblicos hebreus permeiam respeitosa sabedoria com relatos de banalidades históricas versando desde a própria criação humana com detalhada e precisa fixação de data, época, métodos e meios, também até para o planeta e o próprio universo. Silêncio a respeito seria mais valioso. Porém deixaria o vazio insuportável... e então vence a lorota...
Na incipiente sabedoria grega floresce a filosofia e Sócrates, ao priorizar a indagação desponta com aquela corajosa inovação, na sua constatação de que sabia que nada sabia. Mas, mesmo lá, é afinal silenciado com cicuta. Pois até ali, existiam Deuses poderosos e tenebrosos nos cumes do Olímpo.
Dentro de mais três a quatro séculos surge outro inovador corajoso na sua mansidão. Pouco afirma e quase nada contrapõe, mas compara muito da realidade já materialmente estabelecida.
Com suas parábolas, gestos, atitudes, ensinamentos estabeleceu o perdão e o amor ao próximo, como novidades potencialmente salvadoras da humanidade. Sem negar o divino esotérico conceitua a duplicidade virtual entre criador e criatura, pai e filho, estabelecendo igualdade entre o eu em si e seu semelhante. Tal a revolução conceitual, ideológica, religiosa, dogmática, filosófica, moral, até já humanística e potencialmente social, bem como também revolucionária em termos de psicologia aplicada ao ser em si e que provocou a maior, ou pelo menos uma das maiores mudanças na expressão de conteúdo da espiritualidade humana: o Cristianismo.
Novamente então, repetindo a reação grega, ao ver os seus interesses sacerdotais em perigo ameaçados, a classe de druidas com poderes estabelecidos reage prontamente alarmada. Estabelece argutamente a Poncio Pilatus, ainda que com as mãos lavadas, como conveniente testa de ferro representante do poder Romano em vigor reinante e felina e habilmente mais uma vez mortalmente ataca. Desta vez a crueldade aponta suas garras, ao comparar-se com a enaltecida, doce e elogiada anestesia da cicuta relatada pela ferina ironia do gigantesco mestre heleno.
A consubstanciar-se numa indicação de ser o humor Divino, na contrapartida da doida, doentia e burra, ainda que esperta e sagaz idiotice Maligna, aquele martírio feroz que pretendia ser tão destruidor no ato em si como em futuro e para sempre aniquilador, estabeleceu-se no fato a enaltecer e consagrar definitivamente em infinita glória os ensinamentos, a doutrina e o supliciado. Agora, ironia aplicada ao caso, faz transcender até a imagem do acontecimento e do próprio condenado quando enaltece até o instrumento do suplício, também como objeto sagrado. Hoje não só o conjunto cenário da crucificação como mesmo o retratar pessoal imaginário de Jesus, mas a própria cruz se faz consagrada.
Isto é ímpar, quase inexplicável e até incompreensível sendo o único caso assim estabelecido e não abominado. Não veremos a corda isoladamente como representação simbólica do heroísmo de Tiradentes e nem a caneca de veneno lembrando sabedoria, a coragem pessoal e cívica e a inteligência de Sócrates. Nem cepo, machados e guilhotina enaltecendo revoluções e revolucionários, ou fuzis, metralhadoras e paredões representando outros mártires.
A tomarem-se tais ocorrências como marcos estabelecedores de fixação do período para a idade áurea da humanidade, como de fato o são, continuemos observando e analisando o desdobrar dos acontecimentos posteriores. Após aquelas fases mergulhou a humanidade em obscuros tempos medievais. Quando tornou em renascimento o clássico e o elevado das categorias referidas já voltou deturpado ou até vinculado aos interesses opostos a que inicialmente combatia. Assim, a retomada positiva alcança e abrange muito mais ao interesse materialista do que aos conceituais, ficando na prática estagnados ou quase inalterados os princípios elementares e todo o relativo ao emocional, ao psicológico e ao espiritual.
Aconteceram novidades, sim, até muitas. Citemos apenas ao mestre Sigmund Freud, exemplificando no caso dos primeiros dois aspectos apontados. Mas, o espiritual apenas se deturpou, dividiu e até deteriorou enquanto materialmente disparou-se da tecnologia elementar dos meros arco e flecha e da roda até aos foguetes e naves espaciais, dos escritos a carvão e tinta em pergaminhos à mídia eletrônica e aos recursos da inteligência morta, mas mesmo assim poderosa e rica dos métodos artificiais. Na medicina partiu-se dos ensinos de Hipócrates e do conhecimento das ervas e cirurgias elementares aos transplantes de órgãos vitais, imunologia avançada, segredos genéticos básicos e descobriu-se a sequência helicoidal do DNA.
Agora dispondo cumulativamente conhecer até mistérios do espaço e do tempo com a visão da relatividade de Albert Einstein, tendo pisado na face da Lua e adquirido poder e a capacidade de manipular e criar a vida nos laboratórios, ainda não sabe, não quer ou não pode abandonar a barbaridade. Se apenas adolescentes irresponsáveis tomassem jetskis ali disponíveis como um fuzil sobre uma mesa ou dependurado numa parede como ornamentação, seria pouco. Acontece, todavia, de poderosos presidentes, chefes nacionais e preparados generais praticarem atos piores, mais sanguinários, e ainda, conscientes, calculados e premeditados, impunemente. Portanto, não fica incompreensível assistir a trucidamentos inimputáveis culposos, barbaridades diplomática e politicamente legais, em convivência com níveis de criminalidade sociais também estarrecedores.
Deveria sim ser politicamente inaceitável, socialmente muito preocupante e civicamente inadmissível. Mas, porém, todavia, contudo... Estão acontecendo!...
Existe solução ou remédio?
Só Deus é que sabe...
E, não só parece, mas existe registro escrito apocalíptico alertando que... Não!
E agora... José?!
Esperemos para ver...
Pessoalmente, vou levando a vida de observador estratégico, como espectador privilegiado um tanto quanto fora da trajetória das balas... muitos cuidados e apenas parcialmente a salvo. Já procurei intervir para tentar mudar a trajetória descrita e senti a inviabilidade quase sendo massacrado... Predomina evidente a já referida doida idiotice Maligna, que parece confiar e esperar mais da burra e ineficaz ação repressiva de contenção de resultados do que na erradicação das causas.
É de imaginar-se ainda hoje a dura luta de um sábio como foi o então visionário da medicina Dr. Oswaldo Cruz, a pregar e bater-se pela erradicação do mosquito transmissor do mal com prioridade ao tratamento sintomático das febres.
E, então?!... O que aconteceu?  Proibidos? Banidos? Regulamentados?...
Ou, nem isto, ainda?...

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quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

ESTÓRIAS DE PADRE COMARCO E AS PARÁBOLAS DE ZECA PITÃO

Zeca Pitão era uma figura rara... E, como toda estampa difícil, indispensável em cada coleção, igualmente parece indispensável a existência de Zecas em quase todas as comunidades... O que varia é o estilo...

Pitão era bem caracterizado... Começava por possuir uma personalidade multifacetada... ou, pelo menos... dupla. Se bem que, duplicidade de comportamento não seja raridade, da qual alguém esteja a salvo.

Afinal, é mesmo, tópico de ciência, em psicologia e sociologia, a duplicidade mínima dos papéis que cada indivíduo desempenha, na vida social e privada, e seus respectivos.

Mas, a multiformidade apresentada em Zeca, à qual nos referimos, era a de tipo menos comum, embora encontradiça como já se apontou, em quase todo grupo social, nas suas diversas variedades.

Enfim, Zeca Pitão era pelo menos sonso, mas simultaneamente bobo e ladino, do tipo que se faz de morto para surpreender o coveiro.

- Taí... Tipo danado!... Existe, mesmo!... Eu já vi!... – comentava-se.

E... Zeca ia sempre à Missa... Era costume dele.

- É verdade... Existem vários assim – confirmavam.

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Padre Comarco era dono de estilo, e possuia do dom com a finura que lhe cabia.

Era também bom gracejador... Daí para historietas interessantes, que visavam atrair e prender a atenção de seus ouvintes era menos do que um passo. Com o tempo, suas narrativas tornaram-se conhecidas, e ganharam divulgação.

Depois de muita distração, Zeca deu-se em prestar atenção nas parábolas de padre Comarco. Afinal, chegavam a ser muito interessantes... Era verdade!

- É verdade... – repetia-se.
E, o Zé, interessou-se em ler a Bíblia. Lá, acabou por compreender o que eram parábolas... Gostou!... e... Começou a elaborar as suas também.
- Humm!... – ouvia-se.
Assim, passaram a ser conhecidos os causos de Zeca Pitão, em contrapartida às parábolas do padre.

Padre Comarco era um frade, de cabelos brancos e ar alegre que lembrava uma figura entre santo e divertido como um duende. Ao conjunto de suas características somava-se um profundo conhecimento filosófico que completavam suas qualidades incomuns.
Como resultado, era querido de todos. E, de seu lado, amava a todos com pureza de coração. Nisto incluía Zeca Pitão, o que era raro para este, pois como já ficou estabelecido, tratava-se de figura difícil, e difícil também era o entendimento e a convivência com o tipo. 

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Aquela singularidade provocou outra, em simetria, do lado de Pitão. Pois este, acostumado ao desprezo geral, desconsiderado como pessoa normal, objeto de chacotas e todo tipo de caçoadas, encontrou em Comarco um respeito e consideração humana que lhe eram desconhecidos.
Numa dialética natural, isto lhe redundou em elevação do amor próprio e até no florescimento de certo orgulho. Pois, pressentia uma independência e uma liberdade psicológica incomuns aos dos seres considerados normais.      

Acrescente-se o fato de que sua própria existência era uma exceção.
Embora lhe fosse desconhecido, o pai era de estirpe nobre. E a mãe, que o abandonara recém nascido, era uma rapariga, pivete espaventada que se criara também nas ruas. Assim, se dependesse do esquema social e das normas estabelecidas, Zeca Pitão jamais teria existido.

Mas existia e era inteligente, ainda que considerado louco.

Quando ouviu num sermão do sacerdote, a afirmação de que no final dos tempos Jesus deveria retornar à face da Terra, em condições virtualmente opostas às de sua primeira e anterior presença, e com o objetivo de conferir, avaliar, julgar e cobrar o resultado de seus ensinamentos ficou intrigado.

Estava já convencido de que os sinais anunciados para o fim dos tempos eram evidentes e constatáveis, tais como o aquecimento global e suas consequências climáticas e ambientais assoladoras, propagação de doenças e epidemias bem como o surgimento de novas e incuráveis moléstias, guerras absurdas, incontroláveis e inexplicáveis, comportamentos individuais bestiais e assassinatos inconsequentes, mortandade em massa de inocentes e corrupção generalizada de valores e costumes... Em todas as áreas... No comércio, a fraude e o roubo faziam-se incontroláveis. Assaltos com requintes de ousadia extremos, devassidão, pedofilia e todas as perversões grassavam pelas ruas e em quase todos os ambientes.

Acrescentava-se a tudo isto a conhecida existência das diversas profecias Apocalípticas.

Ouvira falar das previsões do Mago Michel de Nostradamus, e ficara era deveras preocupado.

Com a própria palavra de frade Comarco, que tudo fundamentava em suas citações abalizadas nos Livros da Bíblia, era também corroborado e achava muita coincidência com o que acabara ouvindo a respeito das lendas e circunstâncias existentes no conhecido e comentado calendário do povo Maia.
Assim, desta forma, presenciara as apreensões generalizadas ocorridas quando da virada do calendário do milênio, por ocasião do ano dois mil.

Tanto as de natureza mística como também as de natureza material e circunstancial, no que se referiu ao temido fenômeno conhecido como “bug” do milênio.

Como nada aconteceu então, pressentiu que no mundo todos respiraram aliviados.
Porém, notou ter sido justamente a partir daquela data e ocasião que os acontecimentos fenomenais observados desandaram em si.
E, para confirmação das coincidências, reparou que, no intervalo de dois mil a dois mil e doze, data estabelecida nas contagens Maias, perfaziam-se doze anos, ou seja, exatamente um ano para cada signo do Zodíaco.

Mas!... Onde estava Jesus?!... Quem era?!...
Com tal indagação a coçar-lhe os miolos, passou a investigar e procurar confrontando as características opostas. 

Se da primeira vez Jesus tinha nascido pobre, numa manjedoura, manso e cordeiro, pregara a paz, o perdão das maiores ofensas e o amor incondicional e até mesmo preferencial aos inimigos, quem seria hoje o oposto de tudo isto?!
Quem teria agora nascido rico e milionário, em berço de ouro, guerreiro e bravo, pregando e praticando a luta e a guerra, sem falar em perdão e até disposto a ter todos os poderosos como inimigos?

Coçando a cabeça certo dia diante da televisão, que assistia junto de Comarco, ao ver estampado o semblante impassível de Osama Bin Laden, apontou e disse.
- É Ele!... É Ele!! A única coisa que não mudou foi a cara!!
E terminou emendando.

- Agora, só falta desaparecer e sumir o corpo quando morrer!
 
                                                      * * * * * * * 
 

quarta-feira, 13 de abril de 2011

O OCEANO É FEITO DE GOTAS - GFERNANDO C. FARIA


           Viajara já um bom tempo e o cansaço começava a pegar-me no corpo. Estava numa jornada de férias e aproveitara para conhecer o litoral, na imensa região costeira do país. Não havia motivo de pressa e preferia ir pelos locais desabitados, desconhecidos do turismo comercial. Assim deslocava-se mais, na contrapartida da descoberta de recantos paradisíacos e suas águas livres de poluição humana.
 
           Foi quando avistei a enseada com seu colar de areias brancas. A fina linha delgada dividia os tons azulados no mar, da variedade verdejante nas encostas, num cipoal pendente da vegetação luxuriosa.

            No ponto médio da praia encastoava-se uma cabana recoberta de palha. A chaminé de pedra soltava um fiapo cinzento que vagava lento na sua imprecisão. Ia na direção da mata como se fosse uma serpente indecisa, na procura de abrigo e proteção.

            O isolamento da casa chamou-me a atenção. Quem ali estivesse gostava de solidão.
 
           A hora, o corpo cansado e a fome atiçada pela fumaça de um fogão, fizeram-me lá parar. Não custava sondar e, no mínimo, seria obtida alguma informação.

            Nas proximidades sentia-se já o cheiro provocante do camarão, da lagosta, do arroz temperado e demais frutos do mar.

            Aqueles aromas renderam-me o espírito. Antes mesmo de saber quem lá estivesse, já me dispusera a um assédio determinado. Dali não iria sem hospedagem, nem mesmo se a responsabilidade de tais emanações fosse de uma feiticeira com poderes de Circe.

            Os ruídos do desembarque dispensaram-me o assédio da choupana. Fui recebido a meio caminho por uma presença desconfiada nos umbrais da entrada. Era uma figura tostada pelo sol, com os cabelos longos presos à nuca, vestindo uma bermuda “jeans”, compatível com o clima tropical.

            Olhou-me fixamente durante um longo minuto sem nada dizer. Parecia avaliar-me o destino, a vida e os motivos de meu inusitado aparecimento. O silêncio das palavras ficava acentuado pelos ruídos do mar, do vento nas palmas e pelos piados e gritos longínquos na mata.

            Como recém chegado cabia-me a explicação de lá estar. Procurei expressar o mais, indagando apenas o mínimo.

            - Ôhh... de casa!... Tens aí alívio p´ra um corpo quebrado?

            A reação demorou a se dar, como se faltassem respostas para indagações silenciosas que restavam pairando no ar.

            Expressando num gesto a atitude de quem adia a solução de uma charada, disse apenas:

            - Entre...

            Com um aspecto externo comum, internamente a choupana destoava do modelo tradicional da região. Era ampla e sem paredes divisórias, no tipo de um abrigo montanhês.

            - Coloque seus objetos ali no canto, próximo daquela rede, e prepare-se para jantar. A comida está quase pronta – falou enquanto dirigia-se ao fogão.

            A lenha seca ardia numa chama amarelada rodeada de brasas vermelhas e das panelas subiam os vapores espertos. Acima pendiam os defumados numa gama de tons bronzeados, indicando a variedade de suas espécies e sabores.

            - Nota-se que levas uma vida de farturas, hem?...

            - A natureza aqui não deixa a ninguém com fome – respondeu.

            Comemos bem, com calma, enquanto chegávamos a um ponto satisfatório na troca de informações sobre a vida de cada um.

            Contou-me que cuidava de ciências naturais e desenvolvia pesquisas autônomas.

            O resultado de seus trabalhos eram utilizados em universidades da capital. Já dera aulas, mas agora preferia o trabalho de campo, com aquela independência relativa que ali podia-se notar.

            Disse-lhe levar também uma vida semelhante, mas com pesquisas voltadas às ciências sociais. Meus resultados, convertia-os em literatura, com publicações existentes, sofridas do mercado e da realidade intelectual.

            A conversa derivou naturalmente e abarcou os motivos daquela maneira de viver. Nossas experiências, fundadas em setores diversos, culminavam em resultados comuns.

            Explicou a opção de seu estilo de vida, em razão dos desvios que o mundo aplicava. Nossa troca de idéias foi mais fecunda a meu favor. Afinal, tais assuntos eram do meu setor.

            Entre os diversos pontos abordados, houve um a me ficar na memória.

            Comentávamos então, as mazelas da humanidade, lamentando o mau resultado de algo possível e melhor.

            Foi dali que ouvi a comparação da qual jamais me esqueci.

            -Veja o oceano lá fora... É imenso e praticamente incalculável em sua complexidade, mas é feito de gotas... Seja das que já recebe em volumes vários através dos rios, ou das que lhe caem diminutas diretamente do céu, mas é feito de gotas... Assim também são as grandes aflições da humanidade... Variam em extensão e profundidade, mas são todas resultados finais das pequenas e aparentemente insignificantes atitudes individuais.

            - É mais fácil vislumbrar esta realidade na imensidão dos mares, do que aceitá-la como participante na devassidão dos males – ponderei.

            - Sim... E, isto talvez, devido à própria situação de participante – e concluiu – Porém... Cada um tem sua parcela de responsabilidade... Seja por ação... omissão... ou até mesmo por mera opinião.

            - Mas sentem-se todos capazes de lapidação, sem se confrontar a condição de total isenção... Indispensável ao direito de atirar a primeira pedra.

            - Os que têm tal condição, são justamente aqueles que mais procuram evitá-la... Pois, afinal não é solução... Isto, só seria possível com erradicação das causas.

            - Mas, isto... Quando acontecerá?!...

            - Bem... Meu amigo... Isso, talvez... Só caiba ao Todo Poderoso saber...

            Daquela vez, ali foi meu ponto final... Fiquei o restante da temporada, ajudando e colaborando à meu alcance.

            De outra vez que lá voltei, a praia estava deserta. Não fosse a velha chaminé de pedra esboroada, os vestígios restantes de carvão e palha permitiriam deduzir apenas a passagem efêmera de um pescador.

            Os escombros enegrecidos afiguravam-se agora como um sepulcro arrasado... Não passavam de um monturo calcinado ao qual identificava tão somente pelas recordações que trazia.

            Pareceria mesmo que tudo tivesse sido sonho, ficção, ou até manifestação do sobrenatural, se aqueles sinais não me confirmassem a realidade.

            Voltei o olhar ao oceano, que parecia imutável, com suas mesmas vagas rolando no areal... Mas o local já não era mais o mesmo.

            Recordei então o que ouvira ali, e uma complementação, várias vezes citada pela misteriosa figura do estranho personagem que lá encontrei.

            - Não se afobe... meu caro – repetia sempre – É previsão conhecida, recitada e estabelecida, de que o sertão já foi mar... E um dia virá em que também o mar... um sertão será.
 
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