- Quero!... Quero!
Aquela atitude
não soou estranha para Matheus Alencar. Conhecia ele a ousadia do tipo. Os
sensatos, maduros e equilibrados, em regra declinavam daquela proposta. Afinal,
fizera as advertências.
Candidatos mais
seguros e determinados encontravam-se entre três ou quatro categorias básicas
da vivência humana. Alguns por verdadeira necessidade, outros por opção
vantajosa ou como saída psicológica, e as vítimas da curiosidade. Assim, eram
comuns os desenganados pela saúde, em vias de morte certa e agendada; os
condenados a penas extremas sem possibilidades de apelação; os desiludidos,
casmurros e suicidas; e afinal os meramente curiosos.
- Entonce...
Vosmecê deve de arranjá um bode preto...
- Pode ser cabra
ou cabrito?...
- Não!... Eu
disse Bode!...
- Tudo bem...
Amanhã mesmo trago...
- Calma lá!... É
p’ra sê sacrificado numa meia noite de Lua
Azul...
- Lua Azul?!...
- Vai tê tempo de
sabê... De preferência com céu limpo e sem
nuvem, p’ra aproveitá bem as energia... Se tiver tempestade com
relâmpago no final... É bom sinal...
- Só isso?...
- Venha com roupa
branca e tenha uma semana de resguardo, sem bebida, sexo e nem alimento
colorido... Carne, nem pensá... Apareça um dia antes... P’ros preparativo...
-
Preparativos?!...
- Sim!... Isto
mesmo... Vai aprendê e decorá a oração certa que
tem que dizê na hora...
- E... O que
mais?...
- Aproveita o
tempo e pensa bem... Antes de arrumá o bode.
O velho negro era sincero,
honesto e bom conselheiro. Não interessava em aproveitar-se dos incautos. Mas
aproveitava bem a oferta que lhe proporcionavam.
Rolaram as datas até
configurar-se o astral preconizado. E, lá veio o candidato, com o bode e
imaculado como virgem. Só estava bastante suado, e foi logo dizendo.
- Puxa!... Como é difícil arrastar esse bicho teimoso...
- O jejum não era p’ro
bode... Com uma espiga de milho, e de grão
em grão, v’mcê tinha ele aqui numa boa... Faz parte do aprendizado...
Desde a hora que arrumou a criatura começou a função...
O tom irônico de Matheus
Alencar era uma característica natural, sem manifestar-se ofensivo. Da mesma
forma conferiu as demais encomendas e concluiu reiterando.
- Pensou bastante?...
- Hã! Hã!... – Foi a
resposta apressada.
- Entonce... Vamo p’ra
diante... Agora, pega o machado e vai ajuntá lenha e madeira p'ra fazê uma
fogueira boa... Temo que torrá o bicho até virá cinza...
Ao final da tarde havia-se
formado uma pilha considerável de troncos e galhos suficientes. A palidez do
rosto camuflava-se juntamente com a alvura das vestes, tornados acinzentados
pela fuligem e poeira assentados pelo suor. A brancura dos olhos cansados
destacava-se então com aspecto fantasmagórico.
Sincronizada, passou a elevar-se no horizonte a impressionante esfera
da Lua.
Denominava-se Azul pelas
particularidades de data e ocorrência especial no calendário. Por sua aparência
não se distinguia das outras consideradas normais, e passaria despercebida aos
não iniciados. Aos conhecedores impunha-se respeitosa e significativa,
agigantando-se em seu tom alaranjado forte e brilhante como se fosse um segundo
sol, amigo das trevas.
- Agora... enquanto descansa
o corpo, vai decorá isto aqui... p’ra dizê na hora... – indicou o velho negro,
entregando um pergaminho em farrapos e acrescentou – Os nome estranho não
precisa entendê... basta sabê dizê... As palavra conhecida... mais do
entendê... tem que sentir p’ra dizê...
Ato contínuo apossou-se de
um atabaque que passou a percutir enlaçado com as pernas, enquanto mirava a lua
como numa invocação.
Passado algum tempo interrompeu o batuque com a aproximação do
voluntário e inquiriu.
- Decorô direitinho?...
Entendeu bem o compromisso?...
- Sim... Sinhô... – foi a
resposta hesitante e insegura da voz embargada.
- Entonce... Vai fumando
esse cigarrinho... enquanto preparo um chá
de erva que vai tê que tomá... – completou o ancião entregando um charuto de
folhas característico.
Já inebriado pela acre
fumaça inalada, recebeu do negro uma cuia contendo um líquido esverdeado e
escuro com odores de terra molhada e foi aconselhado.
- Vai tomando devagarinho
p’ra não engasgá... E, enquanto descansa o bucho, vai ajeitando a madeira que
já vai’stá na hora de acendê a fogueira...
Depois de também inalar
alguns tragos do misterioso cigarro de erva o negro retomou o batuquear, mais
animado e ritmado com uma variação de arranjos sonoros.
Contagiado pela animação
sonora, bem como pelos efeitos das ervas inalada e tomada, o agora já
principiado do mundo das magias pareceu ter superado o abalo psíquico e
emocional provocado pelos dizeres encontrados no pergaminho. Enquanto montava a
pilha pirófora dançava voluptuoso com cada galho e tronco transportado.
Percebendo a alteração de
comportamento o velho negro incrementou ainda mais a sonoridade do batuque. Com
repiques e retornos de duração e intensidade acompanhava e era seguido pela
ginga corporal em sua sensualidade vegetal.
O disco lunar restringira-se
como uma pupila ótica em seu diâmetro, intensificando-se em luminosidade e
brancura... Já alto no céu, inscrevia no solo sombras escuras e bem
definidas... E projetava a animação dançarina com lubricidade sobrenatural.
- Já podemo pô fogo nos
pau...
A observação de Matheus
Alencar coincidiu com um lamentoso gaguejar do bode, como se pressentisse seu
destino fúnebre.
Despertada pela pequena
chama iniciada na base do arranjo sacrifical, uma coluna de fumo escuro
elevou-se na direção do astro que presidia o cerimonial. Ato contínuo,
inebriada pela fumaça que subia em sua direção a imagem da Lua tomou
participação ativa na dança que ocorria em baixo. Tremeluzindo, ofuscava-se,
entreabrindo-se em matizes variados e vez ou outra ondulava-se como se também
bailasse.
Quando as sombras
encurtaram-se até quase aos pés o ancião ordenou:
- Traga o bicho até aqui...
Pega a faca e deita debaixo dele...
Segura bem nas barbicha... E corta a goela da oferenda...
- Mas... Assim, vou ficar
todo sujo de sangue...
- Sujo, não... Sujo, até que
v’mce já’stá devéra... Agora vai ficá é
tinto e besuntado... E aproveita bem a ducha e se vira p’ra ficá
bem tingido... dos pé ao pescoço... e dos carcanhá até
a nuca... Quanto mais bem pintado... mais garantida a função...
Meneando a cabeça como quase
um arrependimento, mas achando ainda suporte psicológico no transe em que se
encontrava, o voluntário foi até à oferenda que o encarou interrogativo.
- Beéé... ee... ee... éé?...
- Ora... Vamos lá... Bicho
azarado...
Auxiliado pelo ancião que
segurou o animal pelos chifres e convenientemente posicionado em baixo, o
iniciante acionou a lâmina afiada.
Um esguicho quente foi
acompanhado pelo gorgolejar tossido e uma tentativa de reação do animal,
prontamente dominada.
- Jogue a faca longe e se vire
o que mais possa aí embaixo –
determinou Matheus Alencar.
Como parafuso num movimento
de ir e vir, e na medida do que lhe foi possível, o agora já iniciado rodopiou
lubricamente entre as patas de pelo luzidio.
Quando a vítima
desfaleceu-se completamente tendo as últimas gotas do sangue esvaídas, o velho
negro depositou-a do lado e comentou observando o postulante já em pé.
- É... Até que ficou bem
tingido... Isso é bom p’ros efeito...
Apontando a faca caída no chão ao lado, continuou.
- Agora, tira o couro do
bicho... No capricho p’ra não fazê furo a
toa, e dar numa capa boa... E não vá se esquecendo de fazê as reza...
- Dito isto M. Alencar
acocorou-se e reascendendo o cigarrinho tirou
mais alguns tragos, longos e demorados. Em seguida retomou as batidas
ritmadas no atabaque enquanto olhava o luar.
- Pronto... Aqui está o
couro...
- Ponha direito nas
costas... Puxe o bicho nas brasa... e toque mais lenha em cima...
A colocação do animal
esfolado nas chamas provocou um chiado e um surto de faíscas vermelhas que se
elevaram rodopiando animadas.
Entregando a cuia contendo a
poção vegetal, emendou.
- Beba mais uns gole... E
depois pite mais um pouco... Sempre
rezando...
O cheiro de sangue e da
carne trouxeram as presenças negras do felino e do cão Netuno. Ambos
postaram-se sentados e diametralmente opostos, admirando as chamas e o cadáver
da vítima que se consumia entre as labaredas vermelhas.
A movimentação inusitada no
local bem como odores que lhe eram igualmente apetitosos, atraíram também a
coruja buraqueira. Com seu piar longo e gaguejado sobrevoou o cenário e
postou-se curiosa na ponta de um moerão, adicionando a fantasmagórica
contribuição, num trio de enormes olhares fixos e vidrados.
- He!... He!... He!... O’hia
que o negócio s’tá ficando bão!...
Foi o comentário de
satisfação à notada presença daquelas três testemunhas.
As sombras alongavam-se
novamente, diametralmente opostas pelo correr das horas e ouviu-se um galo
cantar ao longe. Imediatamente o dono do terreiro próximo entoou sua resposta,
roufenho.
Observando o torrão escuro
em que se transformara o corpo do caprino imolado, o ali mestre da cerimônia
determinou.
- Arranca o bicho das
brasa... Tira o coração... E come...
Àquela altura dos
acontecimentos nada além, por estranho que fosse, impressionava o ademais
faminto e jejuado pupilo.
Com determinação renovada
cumpriu a sequência de atos com movimentos espertos, e foi então advertido.
- Vai devagar... que seu
bucho s’tá fraco...
Sentindo na garganta a
realidade da advertência o iniciado se conteve. E passou a mastigar com a
devida calma cada naco arrancado com os dentes.
Quando a Lua tangenciou o
horizonte ocidental, quase já só havia um monturo cinzento que cobria um braseiro
quente e colorido.
- Vá aproveitando a cinza do
bicho... E se besunte bem... O melhor
que pudé... Na cara... Pescoço... Mão... Enfim... Toda parte do corpo que não
tivé cobertura de roupa...
Observando a figura final
resultante, Matheus Alencar não conteve um sorriso de ironia e satisfação. Com
a capa peluda de couro do bode nas costas, estava ali configurado um espantoso,
verdadeiro e horripilante Drácula do Sertão.
- Agora... Suma... Antes que
o Sol apareça...
Obedecendo a um gesto do
ancião, orquestradamente o gato emitiu um miado rouco, imediatamente
acompanhado por um uivo longo do cão Netuno e pelo piar sarcástico da coruja.
Ato contínuo, a um levantar
do seu dedo indicador como se mostrasse o céu, ouviu-se o canto matutino do
galo alertando a hora. Lembrando-se num relance repentino de todas as
advertências que ouvira, o monstrengo caracterizado, arregalando os olhos,
virou-se numa desabalada carreira procurando abrigo, esconderijo e proteção.
O negro então retirou-se,
acompanhado pelos animais.
Nos horizontes do poente
tremeluziam relâmpagos longínquos, como se lá de traz das montanhas a Lua
acenasse com derradeiros sinais.
Quem por ali estivesse
ouviria um murmúrio, como um diálogo entre velhos amigos, misturando uma risadinha
do velho, um ronronar do gato, curtos latidos do cão e voejando por cima, o
piado irônico da coruja.
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